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Artigo publicado no jornal Movimento em janeiro de 1981.

por Paulo Fonteles (pai)


Na segunda-feira da semana passada, o CBA/RJ promoveu um debate sobre a recente caravana dos familiares dos mortos e desaparecidos na guerrilha do Araguaia, com o advogado Paulo Fonteles Comissão Pastoral das terras do Pará, que acompanhou a caravana por indicação da seção paraense da OAB. O debate foi prejudicado pela presença de policiais armados que insistiam em evacuar o local (salão da ABI), pois, segundo alegavam, receberam a denúncia de que havia uma bomba no recinto. Apesar das constantes interrupções, Paulo Fontelles conseguiu completar sua exposição, mas acabou não existindo o debate que se seguiria. O que publicamos a seguir é um resumo de sua explanação, com destaque para o trecho em que aborda a participação ou não dos lavradores na guerrilha.

“Hoje, mais do que nunca, é necessário e fundamental que todos procuremos fazer um levantamento sobre a história viva deste país.  Durante séculos o povo brasileiro tem vivido em uma opressão tremenda. E uma das razões da continuidade desta opressão é a falta de conhecimento desta história. Sem conhece-la é impossível qualquer transformação. Independentemente de nossas concepções e de nossa posição política e ideológica é preciso fazer um levantamento da história do nosso povo.

A guerrilha do Araguaia já entrou para a história do Brasil. Os próprios generais,  o disseram. O general Hugo Abreu chegou a dizer que foi o maior levante armado na zona rural do Brasil. O general Viana Mog diz que a mobilização de tropas para o Araguaia foi igual a mobilização da FEB durante a segunda Guerra Mundial.

É um fato incontestável que as classes dominantes sempre esconderam e distorceram a história de nosso povo. Porque iríamos nós esconder e encapuzar a história, aos que somos filhos do povo? A guerrilha do Araguaia foi um episódio de relevo desta história. Entre 72 e 75 houve um movimento armado no curso do baixo Araguaia até a desembocadura do Tocantins. Até muito recentemente era muito difícil falar da guerrilha, que somente se tornou pública e saltou para as ruas depois de 78. Na região era um verdadeiro tabu. Dificilmente se conseguia falar com os habitantes locais sobre os fatos da guerrilha. Eu vou contar pra vocês uma história que se sucedeu comigo nos idos de 74. O Pará, de 1831 a 1835 foi sacudido por um movimento popular chamado cabanagem, porque aqueles que o promoveram moravam em cabanas, eram homens muito pobres. Foi um movimento eminentemente popular que chegou inclusive a tomar o poder na província. Fizeram vários presidentes cabanos. Pois bem, em 1974 eu fui a região onde o núcleo da cabanagem foi mais forte e procurei conversar com os lavradores a respeito da cabanagem. Eu digo para vocês que foi uma dificuldade imensa conseguir dados sobre a cabanagem. No fim, quando os lavradores estiveram comigo, contaram dezenas de histórias. E eu era perfeitamente identificável junto aos lavradores. Então 100 anos depois, os lavradores desta região ainda tem medo de falar sobre a cabanagem em função da terrível violência que se abateu sobre eles.

Antes da caravana percorrer a região ninguém falava publicamente sobre a guerrilha do Araguaia. A caravana fez levantamentos muito sérios. Em Marabá, o bispo D. Alano colocou-nos dois grandes problemas. O terror do povo da região e a ameaça de policiais que percorreram a área aterrorizando quem falasse alguma coisa.

O primeiro levantamento importante da caravana foi constatar que existe hoje no país um verdadeiro campo de concentração na região das estradas OP-2 e OP-3, talvez mais negro e odioso que os campos nazistas, porque este nem é cercado por arame farpado. O que existe lá é ainda pior porque é uma prisão dos espíritos. Quando D. Alano falava em campo de concentração eu achava que era figura de retórica. Mas a caravana constatou que os moradores locais chegaram a pedir ao bispo para não enviar nenhum padre para rezar missa na região. Isto porque toda vez que um padre reza missa na casa de um camponês, este é preso e encaminhado para a 23 Brigada de Infantaria da Selva.

O segundo levantamento importante da viagem foi sobre a vida dos guerrilheiros. Realmente não foram muitos os que falaram sobre a guerrilha. Mas não houve um que não tivesse palavras, as mais elogiosas sobre combatentes. Alguns falavam sobre eles chorando.

A terceira questão importante levantada sobre a caravana foi sobre o problema dos mortos e desaparecidos. Descobriu-se que há túmulos e ossadas na região e alguns  camponeses se dispõem a identifica-los. Grande parte dos combatentes foi pega viva. Vários camponeses viram Daniel, Rosinha, Josias, Duda, Lia, Dina, serem pegos vivos. E hoje podemos perguntar: onde estão aqueles que foram pegos vivos? Será que foram assassinados a seco? E a questão é que não foram apenas 1ou 2, foram dezenas deles. E se foram assassinados, como foram? A mando de quem? Onde foram enterrados?

Um quarto levantamento importante e que cria maior especulação política, foi sobre o apoio que o povo deu à guerrilha. Eu soube da guerrilha muito cedo. Em maio de 72 estava preso em Brasília e soube do movimento armado. Algum tempo depois as primeiras informações que colhi na região eram de que o povo fora um ausente. Durante mais de 1 ano eu disse isso várias vezes: o povo não teve nada a ver com a guerrilha. Comentei inclusive com o Genuíno (José Genuíno Neto), quando nos encontramos, em um congresso em Salvador. Com o passar dos tempos verifiquei que a coisa talvez  tivesse sido diferente. Alguns indicadores me apontavam neste sentido. Por que, por exemplo, o povo do baixo Araguaia luta atualmente com tanta firmeza pela conquista da terra? Por que exatamente naquela região do Araguaia existe tanta firmeza, consciência e organização entre os lavradores? Este tipo de questão começou a me deixar em dúvida.

Com o passar do tempo e com a minha integração com a luta dos camponeses da região começaram a surgir mais dados. Na região de São Geraldo eu já sabia que houve uma presença viva da guerrilha.

Nesta região, mais tarde, houve enfrentamento de jagunços e outras reações. Lá foram mortos dois soldados e o lavrador David sempre contava histórias da guerrilha. Quando foi preso pela participação na emboscada aos soldados, o David respondeu durante o interrogatório que tinha aprendido a fazer emboscadas com o Exército durante a guerra.

Eu diria que a caravana não levantou nenhum dado por si conclusivo. Mas levantou indicadores seríssimos da ampla participação popular de apoio à guerrilha. Na época foram presos centenas e centenas, talvez milhares, de lavradores. O exército prendeu massivamente a população. Em Caiano, onde o apoio à guerrilha foi menor, o exército não fez nenhuma prisão massiva. As pessoas que o exército sabia que tinham ligação efetiva com a guerrilha foram presas. Ficar prendendo e torturando indiscriminadamente não era negócio. Mas na região da Faveira e da Gameleira, centenas de pessoas foram presas por até 8 meses e barbaramente espancadas e violentadas. Mas por que este número? Estas prisões foram massivas e ao mesmo tempo tinham um caráter seletivo. Então, individualmente estas pessoas devem ter tido ligações profundas com a guerrilha, pois do contrário, não teriam sido presas. Na região de menor apoio à guerrilha, que foi Caiano, um camponês contou aos membros da caravana: “Cem por cento das pessoas apoiaram a guerrilha em roupas, calçados, remédios, alimentação, etc”. Foi nesta região onde houve menor trabalho político e menor apoio que a caravana foi recebida com foguetes. Toda a população se confraternizou com os familiares. Um camponês chegou a dizer a seguinte frase: “Eles plantaram a semente e nós estamos continuando a luta que eles iniciaram”.

Em outra região, um camponês chamado Zé da Luz, teve um contato com os familiares e ao final recitou de memória 2 ao 3 dezenas de versos do tempo da guerrilha. Na época ele tinha apenas 16 anos. Como um jovem mantém ainda vivos versos sobre a guerrilha. Talvez não tenha havido um só depoimento que não falasse em lavradores que seguiram com o povo da mata.

Finalmente acho que a caravana levantou a questão do poder e da fúria das classes dominantes quando atingidas neste país. Já vi muitos crimes por parte do regime, mas talvez não tenha havido maior fúria, ódio e sanguinolência do que se abateu sobre o Araguaia. Não digo somente a fúria, mas também o poder que eles demonstraram. Eles foram para lá com uma tecnologia e um conhecimento internacionais sobre este tipo de luta. A caravana pode dar testemunho da violência ocorrida na região. Se queremos transformar a sociedade para uma sociedade mais justa, temos que ter presente o poder com que nos defrontamos é um poder louco em seu ódio. As violências que cometeram no Araguaia se colocam fora das relações entre seres humanos. A prática de cortar cabeças e mãos foi usual e isto não foi feito por jagunços e sim pelas forças armadas. Os lavradores eram presos por longos períodos nus e em salas apertadas, ouvindo sons estridentes. Outros eram jogados em buracos cavados na selva. As classes que detém o poder nesta sociedade não tem o menor escrúpulo. E este testemunho também foi obtido pela caravana.

Politicamente foi da maior importância a presença da caravana na região. Quiséramos nós que todo movimento popular tivesse uma pesquisa acurada e minuciosa. Por outro lado a contribuição da caravana para região foi extraordinária. Foi o exemplo para os lavradores de que a ditadura já não pode fazer o que fazia. Os familiares falaram abertamente sobre os guerrilheiros, colocando nas ruas a discussão sobre a guerrilha.

Finalmente me parece que a caravana foi somente a primeira experiência. Os que foram esperando levantar todos os dados sobre seus familiares, realmente não atingiram seus objetivos, porque foi a primeira vez. Na verdade quem tem todos os dados, quem sabe o destino dos que foram presos vivos, quem sabe é o regime e é ele quem tem que dar conta disto.

A experiência da guerrilha do Araguaia me parece que é uma experiência que tem que ser levantada por todos, independentemente de posições políticas e ideológicas.  Temos que levantar o que houve de acertado e o que houve de ruim. Sem dúvida a guerrilha foi derrotada e então houve erros políticos e militares. Mas  temos que fazer um levantamento minucioso a respeito. Indiscutivelmente os camponeses vivem hoje o reflexo daquela experiência. Portanto, conhecer a história desta luta, é tarefa principal para quem pensa na libertação de nosso país. “