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Araguaia: 20 anos de luta pela Verdade, Memória e Justiça.
Por Paulo Fonteles Filho*
Foi num dia perdido de junho de 1996 que encontramos em São Domingos do Araguaia (PA) – eu e o camponês Sinvaldo Costa – a fotografia de Antônio de Pádua Costa, o “Piauí”, desaparecido político na guerrilha do Araguaia. A imagem, realizada pela repressão política, ensejou o ineditismo na comprovação de que, de fato, militantes políticos foram mortos e tiveram seus corpos ocultados pelo estado brasileiro.
O rigor documental indica que o “Piauí” fora capturado por tropas militares e morto na Base da Bacaba, na Transamazônica, em fins de janeiro de 1974. Mesmo em 1996 a Marinha apresentava, em relatórios à Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, então abrigada no Ministério da Justiça, de que Antônio de Pádua Costa havia sido morto pela “Rosinha”, codinome de Maria Célia Corrêa, em março de 1974. A versão, falsa, foi desmontada pela força da imagem do guerrilheiro moribundo.
Acontece que em fins de abril de 1996, o jornal “O Globo” publicou uma série de reportagens sobre a Guerrilha do Araguaia. O fato é que por dias o Araguaia retornara aos grandes jornais, às manchetes da grande mídia e a pressão da sociedade civil fora tanta, sobretudo das organizações de direitos humanos que o governo de então, de FHC, se viu obrigado a promover uma caravana até a região do conflito, coordenado pelo Ministério da Justiça e que contava com forte presença de familiares dos desaparecidos e com a equipe de antropologia forense argentina que, menos de dois anos depois encontrou nas selvas da Bolívia, os despojos mortais de Ernesto “Che” Guevara.
Eu estudava e morava no Rio de Janeiro, era dirigente da União Estadual dos Estudantes (UEE) e colaborava com a organização das memórias da guerrilheira e ex-presa política Elza Monnerat, uma das mais destacadas lutadoras que o Brasil conheceu no século XX.
O fato é que acabei designado pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) para ir me juntar ao grupo que já estava no Sul do Pará.
Recebi a tarefa das mãos de João Amazonas depois de quase duas horas de conversa na antiga sede nacional dos comunistas, na Rua Major Diogo, em São Paulo.
Certas histórias vivem dentro da gente querendo se libertar.
Cheguei à Marabá (PA) num dia muito quente de junho e tal calor, abrasador, iria acompanhar-nos por todos aqueles dias distantes. Ao descer no aeroporto logo conheci a Diva Santana, também militante comunista, velha amiga de meu pai e irmã de Dinaelza Santana Coqueiro, até hoje desaparecida pelos coturnos da infâmia. Nunca mais nos perdemos de vista.
O clima era tão pesado, de restrições, que num dia, em meio à expedição, o helicóptero da Polícia Federal foi proibido de alçar voo para realizar um reconhecimento. Ordens estranhas vindas de Brasília.
Fora nestas condições que conheci Sinvaldo Gomes, no saguão de um hotel de Marabá. Ele, que se tornaria um grande amigo e mobilizador dessa memória de combates, chegou a entrar para o movimento insurgente e era genro de Antônio Alfredo de Lima, castanheiro que ingressou nas Forças Guerrilheiras do Araguaia, também desaparecido desde outubro de 1973. Meu amigo iria morrer de um câncer fulminante, no início da década de 2000.
Daquele dia em diante segui com aquele camponês por um ano, enfiado nas choças e memórias camponesas. O que seria uma viagem de, no máximo dez dias, se transformaram em meses palmilhando sertões.
Logo a expedição retornou à Brasília e ficamos por ali. Outros camponeses se juntaram a nós, como o José Moraes – o “Zé da Onça” – e acantonados na casa da família dos Moraes, do Frederico e da Adalgisa, numa região conhecida como “Brasil-Espanha” saíamos para nossas missões de reconhecimento. A casa simples de taipa era margeada pelo Igarapé “Fortaleza” e ali escutava as histórias da Jana Moroni Barroso, a “Cristina”, a flor da mata festejada pelos olhos de saudades da Adalgisa.
Nunca aqueles irmãos da igualdade – característica da conduta dos lavradores – me deixaram sozinho, em desamparo. Verdadeiramente aqueles dias me ensinaram o sentido profundo da generosidade humana, sempre comum entre os mais modestos. Carrego comigo a premissa de que essa generosidade é a espada fraternal que empunha nossos camponeses para enfrentar o duro trabalho da roça e os centauros do dinheiro, sempre personificados pelo latifúndio e suas hordas de pistoleiros.
Todo esse convívio foi amalgamando o dia em que encontramos à fotografia do “Piauí”. Mas outras três fotografias iriam aparecer no curso desse trabalho que ora completa 20 anos e elas vieram de fontes militares, que ousamos procurar na região de Parauapebas (PA).
Em todas elas são revelados desaparecidos políticos sob custódia do estado, como Daniel Callado, o “Doca”, Uirassu de Assis Batista, o “Valdir” e outra imagem do “Piauí” numa prisão feita na mata, conhecida como “Buraco do Vietnã”.
No curso daqueles dias, ainda, organizamos uma relação de 19 locais onde, provavelmente, foram inumados os desaparecidos políticos do Araguaia e levamos ao conhecimento do Ministério da Justiça a localização de uma ossada, dada à nós por camponeses de São Geraldo do Araguaia (PA). Em abril de 1997 fiz um longo depoimento na Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, apresentando aquelas imagens recolhidas no Sul do Pará como também os mapas do levantamento realizado.
Toda essa luta completa 20 anos. Essa experiência, dos sertões, mudou, para sempre, minha percepção da luta do povo e de que é imprescindível a luta pelo direito à memória e a verdade.
*Paulo Fonteles Filho foi membro da Comissão da Verdade do Pará.