Por Gutemberg Guerra*
A morte de Virgílio Serrão Sacramento continua exigindo justiça trinta anos depois de levada a cabo pelo motorista de um caminhão madeireiro, depois que o sindicalista passou um domingo intenso de atividades que retratavam os seus compromissos: uma Assembleia do Sindicato de Trabalhadores Rurais tinha acontecido durante a manhã e início de tarde; ele levou a esposa e filha de cinco meses para casa, a 14 km do centro da cidade em sua moto, e retornou para recuperar a agenda de compromissos que esquecera no STR e principalmente para comprar comida para seus filhos jantarem. Passou no STR e recuperou a agenda, passou na feira e no comercio para comprar peixes para o jantar, passou no campo de futebol do Juventus e assistiu um pouco do jogo que se disputava, deixou ali o seu filho mais velho, Dorival, e seguiu para casa. O assassino lhe espreitava de um caminhão estacionado nas proximidades. Seguiu-lhe e bateu na traseira de sua motocicleta, derrubando-o e depois passando os rodados por cima do seu corpo. Não lhe deixaram chegar em casa…
Virgílio foi muito pranteado por seus familiares, esposa, filhos, amigos, liderados, correligionários. Tratado pelo judiciário e imprensa como um acidente banal, o executor do crime pagou uma pena leve de pouco mais de dois anos. A pena dos familiares e amigos de Virgílio continua sendo cumprida com uma série de eventos que se seguiram de imediato e permanecem acontecendo conforme vamos enumerar e refletir sobre elas.
- A agenda de compromissos políticos e sindicais que Virgílio Serrão Sacramento portava no momento de sua morte é indicativo concreto da seriedade com que lidava com os problemas de sua categoria profissional, com os atos de sua comunidade religiosa, com a representação política que exercia como líder comunitário, sindical e partidário. Sua morte implicou em perdas nesses níveis de sua qualificada ação militante. Seu assassinato não é o de um homem comum, mas de uma personalidade com papeis diversos e muito bem definidos no universo em que atuava.
- Os peixes que Virgílio Serrão Sacramento levava para a sua família espalharam-se pelo asfalto, perderam-se na cena do crime e deixou os seus filhos famintos e saudosos. Ceifar a sua vida foi reduzir a possibilidade de uma vida saudável, nutrida, com o atendimento básico aos seus. Cortaram a principal fonte de provimento da família ao lhe tirarem a vida. Essa perda implicou em estratégias de sobrevivência que constou de horas a mais de trabalho de sua esposa e filhas mais desenvolvidas em idade, no preparo de produtos beneficiados a serem vendidos no comercio local por toda a prole, incluindo-se os menores. O trabalho infantil obrigatório foi imposto em um ambiente agressivo do mercado local.
- Há indícios de que a morte de Virgílio Serrão Sacramento esteja ligada à retaliação da morte de Edmilson Soares, ex-vereador do Partido Social Democrático, que praticava sistemático processo de agressão aos camponeses pela abertura de estradas em suas terras e apropriação para o plantio de dendê em associação com a empresa REASA. A morte do vereador em um conflito armado após denúncias de suas arbitrariedades às diversas instâncias de poder municipal, estadual e federal deixou como saldo a ameaça de que seria vingado com a morte do Padre Sérgio Tonetto ou de Virgílio Serrão Sacramento. Virgílio foi executado como um dos primeiros mártires da expansão da agroindústria do dendê no Estado do Pará no dia 5 de abril de 1987.
- O conflito do Curuperê/Ipitinga precisa ser melhor esclarecido pois teria como motivo o interesse de expansão da empresa REASA, atual MARBORGES, da qual o vereador Edmilson Soares seria um testa de ferro, laranja ou representante mascarado por sua atuação parlamentar e como fazendeiro.
- A morte de Virgílio por um caminhão a serviço da atividade madeireira, que ele denunciava sistematicamente tanto quanto a agroindústria do dendê e a atividade pecuária de grande porte pode ser um indício ou pista da autoria.
- Os relatos de traumas na família de Virgílio Serrão Sacramento indicam que eles são decorrentes do assassinato, embora a família tenha conseguido ascensão social a duras penas. Entre os traumas e agressões sofridas pode-se listar: estupro à viúva durante assalto à sua casa após a morte do marido (1994); depressão e síndrome de pânico da filha Edna durante mais de vinte anos; choro frequente dos filhos de todas as idades e da viúva, quando tratam do assunto seja falando, seja ouvindo relatos a respeito; lembranças de maltratos e agressões dos menores quando vendiam gelados, doces e iguarias nas ruas de Moju para compor a renda familiar desorganizada pela morte do pai; falta de memória dos filhos mais jovens e dos netos que não puderam conhecer ou conviver com o pai e avô; falta de tratamento psicológico ou psiquiátrico dos familiares de Virgílio que tiveram que superar ou aguentar as consequências da perda com recursos próprios; sensação de insegurança e impunidade por conta da omissão do estado no que se refere à prisão ou punição dos mandantes ou da empresa que teria sido o pivô do assassinato.
- O tratamento da morte de Virgílio Serrão Sacramento como acidente, descaracterizando-se o assassinato e desvinculando-o da disputa pela terra com a agroindústria é um dos problemas reivindicados pelo filho João. Para ele, o reconhecimento do crime seria a única reparação que pleiteia.
- Omissão do Estado no esclarecimento dos fatos e na falta de assistência e reparação à família da vítima é uma das principais reivindicações da família que mantem a memória de Virgílio Serrão Sacramento viva, através de manifestações anuais por ocasião de datas como a do seu nascimento (2de Outubro de 1942) e morte (5 de abril de 1987), a Fundação Virgílio Serrão Sacramento que funciona na casa em que morou na BR 252, a Cruz de Virgílio que se encontra no local onde ocorreu o seu atropelamento e morte.
- Virgílio Serrão Sacramento era um visionário que anunciou as mazelas da prática empresarial que se instalou e expandiu na região, impondo a monocultura mantida a base de agroquímicos e maquinário pesado, expulsando ribeirinhos e posseiros que viviam do cultivo diversificado da terra e da relação com o meio ambiente. O seu martírio e veneração demonstrados pelos jovens e adultos que moram na zona rural e urbana do município, tanto quanto os amigos que fez em circuito mais amplo evidenciam a existência de uma figura exemplar de homem comprometido com sua família, comunidade, município, estado, país e planeta.
*Gutemberg Guerra é professor da UFPa.