Por Ismael Machado
A morte do cantor e compositor Belchior ensejou mais uma vez a atual mania de patrulhamentos ideológicos no eterno tribunal das redes sociais. A história é uma matéria de uns oito anos atrás, quando Belchior já tinha seus 62, 63 anos, sobre um não pagamento de uma pensão familiar. Os novos juízes do comportamento alheio puseram-se logo a se dizer enojados, a carimbar Belchior de um reles machista e, com isso, diminuir uma obra estupenda na história da Música Popular Brasileira.
Duas jornalistas, Aline Brelaz e Simone Romero, sobressaíram-se na lucidez de análises em tempos onde todos são tão ‘justos’ e ‘certinhos’. Aline questionou uma postagem sobre esse fato perguntando algo básico: quantos anos tinham ou tem esses filhos¿
Já Simone Romero fez a pontuação correta: quem de nós escaparia a um escrutínio mais detalhado sobre nossos atos passados¿
Daria para acrescentar…alguém apurou isso com afinco ou apenas está passando a informação como recebeu? Alguém sabe dos verdadeiros motivos da reclusão do Belchior?
Escrevi sobre Belchior logo que ele morreu. Mas fiquei pensando em alguns exemplos sobre tantos que admiramos.
Elis Regina puxava o tapete de quem considerava rival, era invejosa e, sim, cantou apenas por dinheiro para os militares e não por ter sido ameaçada (essa foi uma versão criada depois para limpar a barra dela). John Lennon foi péssimo primeiro marido e pai ausente do primeiro filho. J.D. Salinger (autor de O Apanhador no campo de centeio) mantinha a mulher num regime de quase escravidão. Nico, a cantora do Velvet Underground, nunca deu a menor pelota para o filho dela com Alain Delon. Janis Joplin, bêbada, era intragável. Nasi, o vocalista do Ira!, começou a transar com a namorada do Scandurra (o guitarrista) com a banda em plena atividade. Ozzy Osbourne, completamente chapado, tentou esganar a mulher. Diana, numa crise de ciúmes, meteu a faca em Odair José. Drummond teve uma amante por 35 anos. Cazuza mandava a mãe tomar naquele lugar. Renato Russo tinha rompantes de autoritarismo puro. Eric Clapton se diz simpatizante de atos de direita, aqueles mais mesquinhos possíveis. Nastasja Kinski usava o corpo para conseguir papéis que considerava interessantes para si.
Eu poderia ficar listando infinitas histórias lidas em biografias as mais diversas que já consumi ao longo da vida. São trechos de vidas humanas. Gente que como eu ou você tem erros e acertos e que, em determinados momentos da vida, cometem atos reprováveis do qual podem se arrepender depois. Ou não.
Essas pessoas são infiéis, tolas, mesquinhas, violentas, egoístas, más, cruéis, indiferentes, injustas, preconceituosas etc etc e etc.
Ou seja, exatamente como cada um de nós em determinados momentos. Elas, como nós, carregam todas as contradições inerentes aos seres humanos. Como cada um na face da terra, são imperfeitas, incompletas, repletas de fragilidades.
Mas o fato é que nada disso pode servir como um fator para que apaguemos num par de linhas mal escritas, obras que ajudaram a definir épocas, que nos transformaram, nos trouxeram novas luzes sobre os próprios pensamentos, sentimentos e emoções, que traduziram anseios, auxiliaram-nos a entender melhor o mundo, a sociedade, a vida.
É um troço tão absurdo ver pessoas que, em vez de olhar primeiro para si e as ‘obras’ que tem construído, passarem a assumir papéis de juízes da moralidade alheia. Nessas horas, socorro-me mais uma vez no próprio Belchior: ‘ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais’.
ESSA É MINHA HOMENAGEM A ELE:
Considero dois compositores os que mais souberam traduzir os anos 70 no Brasil. Ou dito de outra forma, quem mais compreenderam a época que viviam e os dilemas sociais, pessoais, políticos e comportamentais do tempo em que eram também jovens perdidos na selva urbana: Belchior e Guilherme Arantes. Ouvir os primeiros discos de ambos é ter um panorama completo do Brasil de então.
No meu entender Belchior tinha uma grande vantagem sobre, por exemplo, Chico Buarque. Aliás, duas. Uma, talvez de menor importância, mas que não deve ser desconsiderada, era a origem nordestina de Belchior, conhecedor dos preconceitos e olhares tortos que gente de seu mesmo torrão natal sofre quando tenta a sorte em capitais como Rio de Janeiro e São Paulo. Belchior sempre retratou isso em várias canções clássicas de seu repertório.
A outra era o fato de que, ao contrário de Chico, Belchior tinha apreço genuíno, verdadeiro pelo rock. Beatles, Rolling Stones e Bob Dylan não eram referências longínquas para ele. Eram parte de sua formação cultural plena. ‘Não quero lhe falar, meu grande amor, das coisas que aprendi nos discos’.
Belchior era meio que um corpo estranho naquela seara musical dos anos 70. A voz áspera e espessa como o bigode que sempre cultivou, falava de coisas incômodas. Não abraçava o tropicalismo (nada é divino, nada é maravilhoso), sendo sempre um contraponto a Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros. Quando Gil cantava Oriente, entrando na fase macrobiótica e Caetano mergulhava na fase Odara, Belchior dizia que não estava interessado em romances astrais, e que a ilusão era suportar o dia a dia e seu delírio era ter de lidar com as coisas reais.
Olhava com desconfiança para novidades como Secos e Molhados, a que tinha ‘um rapaz delicado que canta e requebra, é demais’. Sentia-se como um autêntico trovador solitário, dialogando com seu tempo, um homem consciente demais das coisas que o rodeavam.
Percebia as entranhas de sua geração, analisava detalhadamente o que estava acontecendo, com um olhar arguto, mas seco e desesperançado. Despejava versos sofridos e belos. ‘E as paralelas dos pneus na água das ruas são duas estradas nuas onde foges do que é teu’. Tocante e dilacerado, como o final de Divina Comédia Humana: ‘enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não, eu canto’.
Belchior disse não muitas vezes.
E cada não era um convite a um agridoce mergulho no Brasil, um país onde crianças do sertão quando morrem não fazem falta pois não comem o pão dos vivos nem ocupam lugar na estrada. Um Brasil onde os jovens não andavam mais reunidos, o dedo em V, cabelo ao vento. Um Brasil onde o cordial brasileiro era tratado como gente, é claro, aos pontapés.
Belchior deixou um legado absurdo em discos como ‘Mote e Glosa’, ‘Alucinação’, ‘Objeto Direto’, ‘Era uma vez um homem e seu tempo’, ‘coração selvagem’…tantos.
Sinto a morte de Belchior com a mesma intensidade que senti a partida de Bowie, Lou Reed, Prince e Leonard Cohen, nomes mais recentes que se foram nesse universo que me abriga, o da música pop.
E lembro um antigo amigo, Ânderson, no ano de 1984, quando o encontro com o disco Era uma vez um homem e seu tempo. Havia trocado por Legends, uma coletânea de bob Dylan. Quando o questionei de tão inusitada troca, me disse: ‘é a mesma coisa…’. Demorei muito a entender a frase, mas ela seria um divisor de águas na minha forma de ver o mundo e as coisas.
Belchior dizia meu bem. Outros cantores chamam Baby.
Valeu, Belchior.