Até então, todas as tentativas de responsabilização penal de agentes de Estado acusados de violações de direitos humanos haviam sido rechaçadas. Os juízes sempre alegaram, ao recusar as denúncias, que crimes estão prescritos ou foram abrangidos pela Lei da Anistia de 1979.
O major Lício e o coronel Moura participaram das atividades de combate à Guerrilha do Araguaia, no início dos anos 1970. No caso do Major Curió, a juíza reformou uma decisão anterior, de um juiz substituto, que havia negado o pedido de ação penal do MPF.
Asdrúbal
O major da reserva Lício Augusto Maciel, à época usava o codinome de doutor Asdrúbal. Ele foi denunciado pelo sequestro de Divino Ferreira de Sousa, o Nunes, capturado e ilegalmente detido pelo Exército durante a repressão à guerrilha em 1973.
De acordo com as investigações do MPF, Divino foi emboscado no dia 14 de outubro de 1973 pelos militares chefiados por Lício, quando estava ao lado de André Grabois (o Zé Carlos), João Gualberto Calatroni (o Zebão) e Antônio Alfredo de Lima (o Alfredo). Ao avistarem os militantes, Lício e seus homens abriram fogo. Os outros três guerrilheiros foram executados e Divino foi sequestrado e levado com vida para a base militar da Casa Azul, em Marabá. Apesar de ferido, Divino foi interrogado e submetido a grave sofrimento físico em razão da natureza da detenção. Após isso, não mais foi visto.
Entre as testemunhas do sequestro de Divino está o militar José Vargas Jimenez, que escreveu um livro sobre a repressão à guerrilha e depois confirmou todas as informações em depoimento oficial às autoridades brasileiras. Ele disse que Divino foi capturado com vida e levado para as dependências do Exército. No mesmo sentido é o testemunho de Manoel Leal Lima, o Vanu, que servia de guia para o grupo de militares durante a emboscada.
Vanu afirmou que os militantes políticos encontrados em 14 de outubro de 1973 não representavam ameaça pois estavam abatendo porcos para a alimentação no momento da captura. Eles poderiam ter sido rendidos, mas foram mortos, com exceção de Divino, levado vivo para a cidade de Marabá. Ainda segundo Vanu, Divino Ferreira de Souza, após interrogado, nunca mais foi visto.
Tanto Vanu quanto Jimenez e outras testemunhas relataram os sepultamentos dos três militantes do PCdoB mortos na ocasião da prisão de Divino. Jimenez contou que um dos corpos teve o dedo cortado por um soldado, que descarnou o dedo e passou a usar o osso do guerrilheiro como amuleto. Sobre a morte de Divino, não há relatos consistentes. O que se sabe é que ele foi capturado, interrogado e depois desapareceu.
Responsáveis
Para o MPF a responsabilização penal de Lício Augusto Maciel decorre da participação inequívoca dele nos crimes relatados na denúncia, o que inclusive foi por ele reconhecido em depoimento prestado na Justiça Federal do Rio de Janeiro, em 2010. O sequestro de Divino aconteceu durante a denominada Operação Marajoara, última fase dos combates entre Exército e militantes.
“Nessa etapa houve o deliberado e definitivo abandono do sistema normativo vigente, pois decidiu-se claramente pela adoção sistemática de medidas ilegais e violentas, promovendo-se então o sequestro ou a execução sumária dos militantes. Não há notícias de sequer um militante que, privado da liberdade pelas Forças Armadas durante a Operação Marajoara, tenha sido encontrado livre posteriormente”, relata a denúncia do MPF.
“Especialmente nos casos de sequestro, além da perpetração de sevícias às vítimas para obter informação sobre o paradeiro dos demais dissidentes (tortura), seguiram-se atos de ocultação das condutas anteriores visando assegurar a impunidade e manter o sigilo sobre as violações a direitos humanos. Ou seja, ao sequestro clandestino segue a negativa estatal de sua própria ocorrência”, relatam os procuradores da República.
A denúncia contra Lício é assinada pelos procuradores da República Tiago Modesto Rabelo, André Casagrande Raupp, Melina Alves Tostes e Luana Vargas Macedo, de Marabá, Ubiratan Cazetta e Felício Pontes Jr., de Belém, Ivan Cláudio Marx, de Uruguaiana, Andrey Borges de Mendonça, de Santos e Sergio Gardenghi Suiama e Marlon Alberto Weichert, de São Paulo.
Crimes contra a humanidade
Essa é a segunda ação penal movida pelo MPF contra militares envolvidos em crimes contra a humanidade e graves violações a direitos humanos durante a repressão violenta à guerrilha do Araguaia. O primeiro denunciado foi Sebastião Curió. Para o MPF, os crimes de sequestro praticados durante o regime militar não estão prescritos ou cobertos pelo manto da anistia por serem crimes permanentes, de acordo com decisões do próprio Supremo Tribunal Federal brasileiro e também da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
O STF decidiu, em dois casos de extradição de militares ligados a ditaduras latino-americanas, que a extradição deveria acontecer por se tratarem de casos de desaparecimento forçado, que o direito internacional considera como violações graves de direitos humanos sobre as quais não se aplica anistia ou nenhuma disposição análoga, seja prescrição, irretroatividade da lei penal, coisa julgada ou qualquer excludente similar.
De acordo com a sentença que condenou o Brasil pelos crimes do Araguaia, a Corte Interamericana ordenou que “o Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso [violações de graves violações aos direitos humanos durante a Guerrilha do Araguaia] a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja”.