por Elaize Farias
O Ministério Público Federal do Amazonas confirmou nesta sexta-feira (8) à agência Amazônia Real um dos dois massacres em investigação pela Polícia Federal contra índios isolados na Terra Indígena Vale do Javari, extremo oeste do Amazonas. As mortes por garimpeiros dos índios conhecidos como “flecheiros” aconteceu no mês de agosto no rio Jandiatuba, afluente do rio Solimões, no município de São Paulo de Olivença, na fronteira com Peru e Colômbia.
A outra investigação é sobre as mortes de índios isolados Warikama Djapar, mas não confirmadas ainda pelo MPF. O caso, que aconteceu também na TI Vale do Javari entre os rios Jutaí e Jutaizinho, no mês de maio, foi denunciado por índios da etnia Kanamari. O suspeito de mandante seria um produtor agrícola, como publicou a Amazônia Real nesta reportagem.
Para não prejudicar as investigações sobre as mortes dos índios “flecheiros”, tanto o MPF quanto a PF não informaram à reportagem dados importantes para o entendimento do caso como: quantos índios foram assassinados no ataque e por quais armas, além de quantos garimpeiros estão envolvidos no crime, que pode ser tipificado como genocídio contra uma etnia indígena. Mas, objetos dos índios foram encontrados com garimpeiros por agentes federais. Em um áudio de celular, apreendido, a polícia encontrou relatos de garimpeiros sobre o massacre.
“Confirmamos que houve as mortes dos índios isolados e o MPF e a PF estão investigando”, disse comunicado da assessoria de imprensa do MPF à reportagem da Amazônia Real.
Em entrevista, o procurador da República Pablo Beltrand, autor do pedido de abertura de inquérito à Polícia Federal, disse que “algumas pessoas (garimpeiros) estão sendo ouvidas e há diligências em curso. Não temos como dar detalhes sobre elas, no atual momento, para não atrapalhar a investigação”, afirmou.
A denúncia da morte dos índios isolados “flecheiros” por garimpeiros aconteceu no mês de agosto e foi realizada pela Coordenação Regional da Funai em Tabatinga. Índios ouvidos pela reportagem disseram que o número de mortos ultrapassa 20 pessoas.
Com a confirmação do massacre dos índios “flecheiros” pelo MPF do Amazonas, o caso passa ser considerado a maior tragédia contra indígenas que vivem sem contato com a sociedade nacional da Amazônia brasileira após os assassinatos de 16 índios Yanomami da aldeia Haximu, em Roraima, por garimpeiros que invadiram a reserva para exploração ilegal de ouro, em 1993. Na ocasião, a Funai demorou para confirmar o número de mortes do massacre, que teve repercussão internacional.
Até o momento a Presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai), em Brasília, não confirma o massacre de índios isolados “flecheiros” na TI Vale do Javari. O Ministério da Justiça, que também foi procurado pela reportagem, não se pronunciou ainda. Também não há informação se o Exército brasileiro irá apoiar as investigações, que acontecem em uma região de difícil acesso. Só helicópteros podem pousar e decolar nesta região de floresta densa da Amazônia.
Garimpeiros foram ouvidos pela PF
A notícia dos massacres na TI Vale do Javari motivou uma operação conjunta do MPF, do Exército e do Ibama para destruir garimpos no rio Jandiatuba, em São Paulo de Olivença, entre os dias 28 de agosto e 1º de setembro passado. Na operação foram destruídas dragas de garimpo ilegal de ouro, um equipamento que custa R$ 1 milhão cada, o que tipifica que há uma grande corrida de minérios na região apoiada por empresários e políticos locais. São Paulo de Olivença fica distante a 988 quilômetros de Manaus.
Na última quarta-feira (06) dois garimpeiros, que foram detidos na operação no rio Jandiatuba, prestaram depoimentos no inquérito que apura as mortes dos índios “flecheiros” na Delegacia da PF, no município de Tabatinga (distante a 80 km de São Paulo de Olivença em viagem de lancha).
Com eles, agentes federais apreenderam espingardas, além de objetos que teriam sido furtados dos índios “flecheiros” mortos.
Os dois garimpeiros detidos foram soltos depois que prestaram depoimentos. A PF em Tabatinga não informou por que eles foram liberados e se têm ou não participações no massacre dos índios isolados no rio Jandiatuba.
Os homens ouvidos seriam os fornecedores de alimentação para os garimpeiros, além de operarem nas dragas das frente ilegais de exploração de ouro na TI Vale do Javari.
O sucateamento da Funai
Para uma das maiores lideranças da TI Vale do Javari, os massacres de índios isolados é resultado do sucateamento das bases de vigilância da Funai na região, que é denunciado desse 2016.
“Essas mortes de parentes isolados são resultado do enfraquecimento da Funai na Terra Indígena Vale do Javari, onde mais tem registro de índios isolados do mundo. Os cortes de recursos e o descaso fragilizaram o território e as ameaças aumentaram”, disse Paulo Marubo, presidente da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), em declaração à Amazônia Real.
Segundo a liderança, os isolados que estão na área “mais acima” do rio Jandiatuba estão correndo perigo e risco de vida. “Havia uma base que não funciona mais ali. As outras que restam (três ao todo) estão enfraquecendo. As bases dos rios Curuçá e Quixito, por exemplo, não têm mais servidores. Só quem está trabalhando lá são os colaboradores indígenas que não têm preparo para atuar em vigilância”, disse Paulo Marubo.
A Amazônia Real apurou que indígenas que vivem em comunidades do município de São Paulo de Olivença e que fizeram denúncias sobre presença de garimpeiros no rio Jandiatuba passaram a receber ameaças de retaliação após a operação da semana passada. O rio Jandiatuba também corta terras indígenas dos índios Tikuna e Kambeba.
A atividade garimpeira na área do Jandiatuba ocorre há vários anos, mas se agravou em 2016 e cresceu em 2017, segundo Gustavo Sena, coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari. Segundo ele, as dragas ultrapassaram os limites das terras indígenas, aumentando casos de violência e ameaças contra os indígenas, especialmente os isolados.
“Todo o entorno da TI Vale do Javari sofre pressão externa. No rio Jandiatuba tem forte presença de garimpeiros. Tem aumentado muito o número de draga. E temos relatos de que há dragas acima onde começa a terra indígena”, afirmou Gustavo Sena, em entrevista dada no mês passado à reportagem.
Uma base de vigilância e proteção de índios isolados que havia no rio Jandiatuba foi desativada em 2014 por causa de cortes no orçamento na Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari (FPEVJ), vinculada à Funai.
Atualmente, a FPEVJ tem apenas três bases funcionando, nos rios Ituí, Quixito e Curuçá, mais ao norte da terra indígena. Todo o quadro da FPEVJ é de apenas dez funcionários.
“Flecheiros” são desconhecidos
O indigenista Armando Soares trabalhou entre 2002 e 2005 como coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari. Ele disse que há poucos estudos e pesquisas sobre os índios “flecheiros”, alvo do massacre de garimpeiros no rio Jandiatuba.
“É uma etnia que pouca gente conhece. Não tem notícia categorizada para dizer a etnia. É um grupo bem diferenciado, que sempre morou naquela região. Ou seja, a situação deles é pior ainda, porque não há informações especificas sobre eles. Tem que fazer trabalho de localização, saber onde estão, onde vivem, para depois disso criar uma proposta de proteção mais concreta. Se não fizer o mínimo sobre eles haverá mais mortes na certa”, disse Soares à Amazônia Real.
Armando Soares é servidor aposentado da Funai e trabalhou durante dez anos na Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém-Contatados (CGIIR). Ele também criou a Frente de Proteção Etnoambiental Madeira-Purus, no sul do Amazonas, responsável pela vigilância e monitoramento dos territórios dos índios isolados Hi-Merimã e Suruwahá.
Soares contou que a situação dos povos isolados do Vale do Javari pode piorar com a redução das bases de vigilância e de recursos. “Sempre houve cortes de recursos e agora está pior. Mas não é só esse o problema. Tem a falta de sensibilidade dessas pessoas que estão chegando na Funai. Eles não têm sensibilidade com os índios com quem falam de frente, imagine com os isolados, que eles nem veem e até acham que nem existem. É insensibilidade, covardia, omissão e ignorância. Não têm um menor conhecimento de uma situação tão complexa”, afirmou ele, referindo-se aos novos gestores da Funai.
Terra tem o maior número de isolados
A Funai considera “isolados” os grupos indígenas que não estabeleceram contato permanente com a população nacional, diferenciando-se dos povos indígenas que mantêm contato antigo e intenso com os não-índios.
A terra indígena Vale do Javari tem 8, 5 milhões de hectares. Ela foi homologada em 2001 e, segundo a Funai, possui pelo menos 14 referências de índios isolados. Dois deles são denominados de Korubo e Warikama Djapar. Eles são monitorados a partir de visualizações de malocas, roçados e objetos pessoais deixados no caminho.
As etnias contatadas que habitam no Vale do Javari são Marubo, Mayoruna, Matís, Kanamari e Kulina. Há também um grupo da etnia Tyohom Djapar, considerada de recente contato, que vive em uma aldeia dos índios Kanamari. No Brasil, a Funai diz que há 107 registros de presença de índios isolados, todos na Amazônia.
Lideranças indígenas do Vale do Javari dizem que o número de 14 referências está subestimado. O presidente da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Paulo Marubo, disse que o número de isolados vem crescendo e muitos dos grupos têm se aproximado das aldeias dos índios contatados. Ele alertou para o aumento da vulnerabilidade dos isolados frente às constantes reduções nos recursos da Funai e as às invasões de seu território.
“Aqui no Vale do Javari é onde se concentra a maior quantidade de índios isolados do Brasil. Há isolados em toda parte aqui, mas não falamos mais para a Funai. É inútil. Eles aparecem a todo momento, estão indo para mais longe, às vezes por curiosidade, querem conhecer como os outros índios vivem. Mas não fazem contato. Vivem sem preocupação com consequências para a vida deles”, disse Paulo Marubo.
Procurada pela reportagem através da assessoria de imprensa, a presidência da Funai não se pronunciou sobre o sucateamento das bases dos rios Quixito e Curuçá, relatado por Paulo Marubo, presidente da Univaja. (Colaborou Kátia Brasil)
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