Eliane Rocha, especial para a Amazônia Real

Boa Vista (RR) – Em agosto de 2008, Joênia Batista de Carvalho, a primeira advogada indígena do país, fez sua primeira defesa em um julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). O processo em análise da Corte era a Ação Popular (PET no. 3.388) ingressada pelo governo de Roraima contestando a homologação da demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.  Joênia Wapichana, como ela se identifica, apresentou, à ocasião, argumentos sólidos ao se pronunciar na defesa da demarcação do território originário dos Macuxi, Wapichana e Ingaricó, que comoveram seus pares advogados, seus parentes indígenas e os ministros.

julgamento no STF só foi finalizado em março de 2009, com a maioria dos ministros votando a favor da demarcação contínua da terra indígena. Mas os ministros estabeleceram condicionantes, gerando a polêmica tese do marco temporal.

A tese do marco temporal apareceu no voto do relator da ação, ministro Carlos Ayres Britto, atualmente aposentado. Por este entendimento, as terras que estavam ocupadas até o dia 5 de outubro de 1988 podem ser definidas como territórios originários – a data é da promulgação da Constituição Federal. “A nossa Lei Maior trabalhou com data certa: a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) como insubstituível referencial para o reconhecimento, aos índios, ‘dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam’. Terras que tradicionalmente ocupam, atente-se, e não aquelas que venham a ocupar. Tampouco as terras já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro de 1988. Marco objetivo que reflete o decidido propósito constitucional de colocar uma pá de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de ocupação de área indígena. Mesmo que essa referência estivesse grafada em Constituição anterior. É exprimir: a data de verificação do fato em si da ocupação fundiária é o dia 5 de outubro de 1988, e nenhum outro.”

Ayres Britto estabeleceu exceções para o marco temporal, como no caso de povos indígenas que foram expulsos de suas terras, mas a tese acabou sendo usada com outros entendimentos em julgamentos posteriores no STF.

Oito anos depois do julgamento, o governo do presidente Michel Temer (PMDB) autorizou, em 19 de julho passado, um parecer da Advocacia-Geral da União determinando que “toda a administração pública federal observe, respeite e dê efetivo cumprimento” a tese do marco temporal nas análises para demarcação de terras indígenas. A decisão, que atendendo ao lobby da bancada ruralista no Congresso, pode barrar a regularização de territórios tradicionais no país.

A aprovação do parecer da AGU pelo presidente Temer causou manifestações dos povos indígenas de todo o Brasil. As organizações Conselho Indígena de Roraima CIR) e Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) pediram à Procuradoria-Geral da República (PGR) para ingressar com uma ação suspendendo a decisão, mas a PGR ainda não se manifestou se ingressou com uma ação no STF.

Joênia Wapichana começou a carreira profissional de advogada trabalhando no departamento jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR). Em entrevista exclusiva à agência Amazônia Real, ela diz que o marco temporal “é um flagrante da violação do direito”. “É um absurdo no sentido de limitar uma determinação, uma obrigação do Estado brasileiro no reconhecimento das terras, um direito fundamental dos povos indígenas”, completa ela, destacando: “o próprio artigo 231 da Constituição reconhece os diretos originários sobre as terras aos povos indígenas.”

Sobre o parecer autorizado por Temer,  Joênia afirma que “é uma demonstração clara que existe um posicionamento contra os direitos dos povos indígenas no governo.” “Não é suposição, é a própria clareza, é a própria confirmação que não tem qualquer respeito e também não tem qualquer interesse de realizar as demarcações das terras indígenas no Brasil.”

Joênia (de blusa branca) com lideranças indígenas em Roraima no MPF (Foto: Yolanda Simone/Amazônia Real)

Joênia Wapichana é militante do movimento indígena de Roraima desde a adolescência. Ela nasceu na comunidade do Truaru, zona rural de Boa Vista. Ela se tornou um ícone e referência na luta pelos direitos dos povos indígenas em nível nacional a partir de sua primeira atuação no STF.

Mãe de dois filhos, e tendo como pais os Wapichana Anúzia, já falecida, e seu João, ela milita em defesa do seu povo desde a infância. Saiu da comunidade natal para estudar na capital ainda menina, formou-se em direito aos 22 anos.

Ela foi a primeira presidente da Comissão de Direitos dos Povos Indígenas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Mestre em Direito Internacional pela Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, ela também coleciona premiações e reconhecimentos. Um deles é o Prêmio Reebok, que conquistou em 2004, pela sua atuação na defesa dos direitos humanos. Em 2010, foi condecorada com a Ordem do Mérito Cultural do Ministério da Cultura. Também foi a primeira indígena a chegar ao Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), órgão consultor da Presidência da República, sendo indicada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Confira abaixo a entrevista.

Amazônia Real – O marco temporal é uma tese polêmica discutida pelo Supremo Tribunal Federal na ação que reconheceu a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol em área contínua. Como o marco temporal surgiu no processo TI Raposa Serra do Sol?

Joênia Wapichana – Na época em que o caso Raposa Serra do Sol esteve sendo analisado pelo STF, um dos ministros trouxe uma série de discussões que foram enumeradas naquela decisão junto com os acórdãos, mas surgiram mais discussões no voto. Esse pensamento, essa interpretação do marco temporal, seria uma tentativa de limitar os direitos relacionados à terra, principalmente o direito à demarcação física das terras indígenas. No caso da Raposa Serra do Sol não fez nenhum sentido porque o processo todo era simplesmente discutir se o processo era constitucional ou não, simplesmente era uma pergunta que os ministros deveriam analisar. Mas ele, esse ministro [Carlos Ayres Britto], foi adiante, analisou que o direito à demarcação da terra poderia estar atrelado à promulgação da nossa Constituição Federal, que foi dia 5 de outubro de 1988. Com isso, estaria colocando o início do direito à terra, o que é totalmente absurdo. Nós sabemos que dentro da própria Constituição, no artigo 231, são reconhecidos aos índios, a organização social e os direitos originários sobre as terras tradicionais que ocupam. Então, os direitos originários sobre as terras tradicionais demonstra justamente que não é somente até do dia 5 de outubro. O direito originário é um direito à própria origem do estado. Nesse sentindo, estaria totalmente contraditória essa tese do marco temporal. Foi uma tentativa frustrante, digamos assim, contraditória, porque o voto do próprio ministro reconhece o artigo 231. Mesmo assim, se colocou esta tese no julgamento da Raposa Serra do Sol. Não foi colocado nas condicionantes, não foi colocado como decisão, mas surgiu nessas discussões dos votos. E tomou dimensão muito grande porque, a partir da publicação dos votos dos ministros, foi utilizado por pessoas que defendem essas limitações dos direitos para tentar impor como uma decisão que poderiam surtir efeito comparado a uma jurisprudência, a uma súmula do Supremo.

Amazônia Real – Qual sua opinião sobre essa tese do marco temporal ser aplicada pelo governo Michel Temer para demarcar outras terras indígenas no Brasil?

Joênia Wapichana – Além de ser absurda, é inconstitucional porque o próprio artigo 231 fala bem claro que são reconhecidos os diretos originários sobre as terras aos povos indígenas. E tem essa tentativa de justamente paralisar as demarcações das terras indígenas no Brasil todo porque não fala que é somente aplicável à Raposa Serra do Sol. O marco temporal é absurdo no sentido de limitar uma determinação, uma obrigação do Estado brasileiro no reconhecimento das terras, que é um direito fundamental dos povos indígenas e tem um interesse muito forte, político e econômico. Nós vemos aí que a bancada ruralista está tentando há muito tempo. A gente analisa pela PEC 215, que tentou trazer e tenta trazer as condicionantes da Raposa Serra do Sol incluindo essa discussão do marco temporal. A tentativa de arrendamento de terras, a questão de exploração dos recursos hídricos e minerais é uma tentativa de violação aos diretos dos povos indígenas, de afetar os mais vulneráveis, que são os povos indígenas, e tentar impor esse interesse político e econômico sobre o direito constitucional. Quando o governo Temer determina o parecer que foi aprovado pela Advocacia Geral da União, o Parecer 001/17, tenta normatizar esse posicionamento do marco temporal da condicionante da Raposa Serra do Sol é uma demonstração clara que existe um posicionamento contra os direitos dos povos indígenas dentro desse governo. Não é suposição, é a própria clareza, é a própria confirmação que não tem qualquer respeito e também não tem qualquer interesse de realizar as demarcações das terras indígenas no Brasil.

Joênia Wapichana, liderança indígena de Roraima (Foto Yolanda Simone/Amazônia Real)

Amazônia Real – A forma como o governo Temer está usando o marco temporal para regularizar os territórios tradicionais pode ser considerada uma violação de direitos humanos?

Joênia Wapichana – Se ele [governo Temer] tentar usar o marco temporal como condição, está.  Nós estamos ainda com essa ameaça, essa ameaça foi concretizada a partir do momento em que ele paralisou a demarcação, mas a gente já tem sinais de algumas decisões judiciais que já estão esclarecendo que esse marco temporal é absurdo e inconstitucional e não deve ser aplicado. Então, vai ser uma disputa, um conflito judicial muito grande. Ele [Michel Temer] impõe que todo órgão da administração pública siga essa orientação [o marco temporal], o que para nós é uma violação. Ele está determinando que os servidores públicos, pessoas que atuam na demarcação como funcionários da Funai, os próprios procuradores, que têm esse papel de defender direitos, ele está dizendo assim: “olha, quando você defender direito, você for aplicar, você deve seguir essa orientação do parecer”, que é justamente nada de demarcação de terras indígenas, de indígena que não esteja até dia 5 de outubro de 1988. Ou até mesmo não ampliar a demarcação de terras indígenas. É um flagrante da violação do direito.

Amazônia Real – O marco temporal já vem sendo usado em alguns julgamentos no STF. Foi o caso da Terra Indígena Limão Verde, no Mato Grosso do Sul, que teve a demarcação anulada. A senhora acha que a decisão de Temer, que antecipa o próprio entendimento do STF (onde não há unanimidade) pode agravar conflitos?

Joênia Wapichana – Com certeza. Só o fato de ele sinalizar que está ao lado de pessoas que não respeitam os diretos indígenas, dá uma força muito grande para abuso de autoridade, violações, inclusive respaldando atitudes, atos de violência contra os povos indígenas. É necessário que se declare inconstitucional o mais rápido possível essa discussão, como recentemente tivemos no Supremo o julgamento do Mato Grosso. Oito ministros concederam interpretação que é totalmente inconstitucional ao marco temporal. Ratificando os direitos originários, falando que a demarcação é um direito e que devem ser considerados todos os aspectos constitucionais para proteção dos direitos humanos relacionados aos povos indígenas.

Amazônia Real – Em um seminário ocorrido em abril deste ano no Ministério Público Federal, a senhora mostrou-se preocupada com a má interpretação do marco temporal para delimitação. Também disse que há uma tentativa de frustrar as futuras demarcações com “a divulgação de um suposto fracasso da delimitação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima”, que foi demarcada em áreas contínuas. Gostaria que a senhora comentasse mais a respeito dessa afirmação.

Joênia Wapichana – Essa é uma tentativa do governo com a bancada ruralista à frente do agronegócio que está querendo, de qualquer forma, criar, legalizar invasões, legalizar o latifúndio, legalizar as violações aos direitos. Isso é um absurdo que o país vive. Nós estamos passando por um período de crise, crise na Justiça, crise no governo e a crise dos direitos porque o marco temporal é a prova disso, que existem várias interferências políticas, econômicas para tentar atingir os mais vulneráveis, que são os povos indígenas que vivem na sua terra e merecem, digamos assim, toda a proteção possível, constitucional. A gente sabe, nessa frente, quem são os mais poderosos – político e economicamente – que estão tomando a decisão no país. Realmente ela é uma tentativa de barrar as demarcações das terras indígenas. No caso da Raposa Serra do Sol foi tentando utilizar isso como um contraponto porque dento do caso da Raposa Serra do Sol foi deixado bem claro por todos os ministros que tomaram a decisão, que a demarcação da Raposa Serra do Sol era o modelo de demarcação a ser seguido em todas as demarcações, respeitando todos os critérios constitucionais, que é o critério ambiental, critério da preservação dos recursos, critério do desenvolvimento, das atividades produtivas realizadas pelas comunidades, levadas em consideração todos os aspectos culturais, espirituais. Considerando não somente a posse em si, mas a posse que a comunidade vai usar para sobreviver física e culturalmente e também não só dessa geração, mas das futuras. Então, foram princípios constitucionais que foram considerados na demarcação da Raposa Serra do Sol. Como contraponto, tentaram empurrar esse marco temporal, mas no meu entendimento o que deve imperar são todos esses princípios constitucionais porque nós temos uma Constituição a zelar e não pode ser nada contra o que determina esse artigo 231.

Índios comemoram demarcação contínua da reserva Raposa Serra do Sol (Foto: Nelson Jr./SCO/STF/2009)

Joênia Wapichana se filiou ao partido político Rede Sustentabilidade (Foto: Yolanda Simone/Amazônia Real)

Amazônia Real – O ministro Gilmar Mendes declarou que a Raposa Serra do Sol seria uma demarcação errada porque, segundo ele, os índios estão vivendo no lixão. O que a senhora tem a dizer sobre isso?

Joênia Wapichana – Ele deveria responder por um processo. O Conselho Nacional de Justiça deveria ter uma medida para ele porque, para mim, é um absurdo uma pessoa que está ocupando um cargo tão alto, na alta Corte brasileira, ter uma posição tão equivocada, digamos assim racista. A Raposa Serra do Sol está tentando reverter o quadro negativo que foi deixado pelas pessoas que estavam aqui. Essas pessoas que falam que os indígenas estão no lixão, comprovadamente, são aquelas pessoas que querem detonar uma demarcação em área contínua para outras terras indígenas no Brasil. Quando ele fala que é um modelo errado para outras terras, porque ele sabe que a gente conseguiu provar, dentro do processo Raposa Serra do Sol, que é uma questão de direito. E ele está muito desinformado sobre a situação dos povos indígenas na Raposa Serra do Sol. Há dois dias, comunidades indígenas da região da Serra, no Maturuca [município do Uiramutã], entregaram em Boa Vista para a Conab [Companhia Nacional de Abastecimento] mais de 20 toneladas de milho. Como é que alguém que está morrendo de fome está produzindo 20 toneladas de milho? Semana que vem vamos entregar mais toneladas de milho, a gente vai fotografar e, se fosse possível, o Gilmar Mendes veria o tanto de produção que as comunidades indígenas estão fazendo e graças a uma demarcação em área contínua. Ele deveria estar valorizando a decisão que foi tomada em 2009 sobre a Raposa Serra do Sol e confirmar que era a medida mais do que justa com os povos indígenas. Poderia o Conselho Nacional de Justiça, de uma vez por todas, vir fazer uma visita in loco como vieram naquela época ministros e foram à Raposa Serra do Sol. Eles imaginam que esse lixão, que já existe há muito tempo para quem não sabe, até indígena tem e acho que é até argumento de indígena porque eles não têm terra, foram indígenas que fugiram de uma situação da Guiana, que não passam por aqui, ou até indígenas que moram na cidade, que não têm seus direitos respeitados, mas não são da Raposa Serra do Sol. Quando ele fala que na Raposa Serra do Sol os índios não estão precisando de demarcação, que estão é precisando de programas sociais, está havendo discriminação contra os povos indígenas ali porque, para nós, a terra é um direito fundamental. Sem a terra, não existe a cultura; sem a terra, não tem trabalho; sem a terra, não tem educação; sem a terra, não tem saúde; no fim das contas: sem a terra, não tem o direito social. É uma visão que ele está tentando implementar não sei para quem porque é meio contraditório. Ele votou contra a questão de indenização no caso do Mato Grosso e vem com esse discurso de discriminação com os povos indígenas da Raposa Serra do Sol. O Conselho Nacional de Justiça tem que apurar isso, mas a gente tem que fazer valer esse desentendimento da Constituição.

Amazônia Real – A senhora atuou também como advogada no julgamento do STF, representando os indígenas da Raposa Serra do Sol. Como foi aquele momento para a senhora?

Joênia Wapichana – Não atuei só naquele momento. Comecei a advogar no caso Raposa Serra do Sol aos 24 anos, quando assumi, dentro do Conselho Indígena de Roraima [CIR], a assessoria jurídica pegando casos da Raposa Serra do Sol, pequenos conflitos que não eram tão divulgados. Foi uma continuação de trabalho em defesa dos direitos coletivos das comunidades da Raposa Serra do Sol. Eu já tinha esse compromisso na defesa dos casos locais, foi uma sequência quando, em 2003, 2004, surgiram as primeiras liminares contra as comunidades indígenas, por conta de três advogados que entraram com uma ação popular contra a demarcação da Raposa Serra do Sol. Depois, vieram os arrozeiros que questionaram a terra para si para poder plantar o arroz, aquele conflito todo de questões ambientais. Foi um histórico e chegou até o Supremo, foi um processo todo que desde sempre eu tenho acompanhado o caso da Raposa Serra do Sol, depois que me formei como advogada. Para mim, foi uma coisa decisiva, uma responsabilidade como profissional, mas, acima de tudo, porque eu estava advogando praticamente em causa própria. Minhas raízes estão na Raposa Serra do Sol, os parentes, todas as comunidades, eles me viam não apenas como advogada, mas como uma voz indígena que poderia estar falando. A gente sabe que quem só poderia estar falando era uma advogada. Eu pude falar porque sou advogada e, lógico, contei com ajuda de várias colegas, como sempre contei em todos os casos. A gente sempre procura trabalhar para quem ajuda os povos indígenas. Aquele momento foi especial porque eu via que todo mundo estava bastante apreensivo, nervoso e era como se fosse a última [pausa] como é, né? O Supremo é a última instância para que se confirmasse ou não. Ali é “vai ou racha”, como os parentes falam. Era uma oportunidade de a gente colocar para fora todas as apreensões que havíamos passado. Foi um momento simbólico, mas também decisivo profissionalmente para um caso que eu já acompanhava há muitos anos. Não foi só foi em 2008 e cheguei lá, já havia acompanhando o caso há alguns anos.

Amazônia Real – Quando a senhora começou a militar no movimento indígena em Roraima e o que lhe despertou para essa luta?

Joênia Wapichana – Vem de criança, vem da própria família. Não é assim, agora vou me tornar indígena, mas a sensação de justiça já nasce com você. A gente vê desde a infância os parentes falando, defendendo todo um histórico da família e as apreensões. Enfim, todo esse resgate vem à tona, depois você decide atuar com direitos indígenas. Eu comecei a atuar como advogada no CIR, que é uma grande escola de referência. O Conselho Indígena de Roraima, que é uma organização formada em 1971, mais antiga do que eu. Ele trouxe toda possibilidade de entender essa dimensão que são os povos indígenas de Roraima e fazer entender que eu sou parte disso também. É minha responsabilidade como indígena, como alguém que conseguiu se formar e que teria compromisso com quem está lá dentro da comunidade. Vivo aqui em Boa Vista, mas meus parentes continuam lá, meu pai, a minha raiz é forte. Além de dar o exemplo, eu tenho que me mostrar solidária a essa causa. Lógico que poderia muito bem estar formada e estar advogando para particulares e não ligar mais para onde eu vim. Eu, como é próprio meio de vida, de ser humano, responsável, eu acredito muito nesses trabalhos porque nós temos uma responsabilidade compartilhada. O senso de justiça e de respeito ao próximo também. Eu preferi ir nessa área por conta disso, por entender que eu posso fazer a diferença no meio desse contexto todo.

Amazônia Real – A senhora sofreu muita discriminação e preconceito por ser mulher e indígena na escola e, posteriormente, na faculdade?

Joênia Wapichana – Os indígenas sofrem muita discriminação, principalmente quando estão na cidade. O próprio nome “indígena” já lhe dá um sentimento de intolerância a muitas pessoas, que não conhecem a realidade dos povos indígenas, que não conhecem a cultura, que a diferença que existe é apenas cultural, mas tem um tratamento inferiorizando os povos indígenas. Seja na faculdade ou no dia a dia, a gente sente isso e vê. Pode nem ser por palavras, mas por olhares. Eu estudei em escola pública, fiz faculdade na Universidade Federal de Roraima. Eu sempre conto, quando estou em seminário, minha experiência como advogada. Teve uma vez na delegacia onde fui pedir para ver um preso, estava só o agente de segurança e pedi para conversar com o delegado. A pessoa nem quis saber quem eu era e já foi me dando título: “A senhora é esposa do preso, é irmã, é parente do preso?”. Respondi: “O que tem a ver? Eu gostaria de falar com delegado, por favor chama que eu sou advogada do preso”. Eu tive que dar a famosa “carteirada”. A pessoa me olhou dos pés à cabeça não acreditando “essa mulher indígena, advogada”. Rapidinho: “Doutora, senta. Quer um cafezinho? Vem aqui, que tem ar-condicionado”. A figura já muda, mais em tom de medo do que de respeito. A gente passa por isso no dia a dia, a discriminação é muita disfarçada, a pessoa pode até te atender direitinho, mas fica aquele sentimento de mágoa. Principalmente na época da Raposa Serra do Sol, que a gente brigava, tinha muito sentimento forte aqui na cidade achando que os indígenas são ameaças, que os índios vão pegar a terra, essas terras que têm muito minério, porque só tem que ir para os índios, são os americanos que estão virando a cabeça deles, são os padres. Esse tipo de discriminação eu sofri muito, sofri por parte da mídia, algumas rádios locais, tive que processar, ganhei, inclusive, indenizações, mas era porque diziam, quando eu atuava em defesa dos direitos humanos, quando eu levei o caso pra OEA [Organização dos Estados Americanos], em 2004, surgiu muito essa discussão: “Ah, Joênia está se vendendo para os Estados Unidos”. Não têm a mínima noção do mecanismo de defesa dos direitos ou se eu estava defendo a organização, a ONG. Não é ONG é uma organização indígena. E essa discriminação até hoje a gente passa. Amenizou mais agora, eu creio. Daquele tempo para cá, já deu uma reviravolta. Muita gente agora quer ser indígena, ao contrário. No passado, tinha vergonha, justamente com medo de sofrer essas represálias, sofrer discriminação, preconceito. Depois que a gente ganhou essa batalha toda, todo mundo “ah, eu sou indígena. Sou Macuxi, Wapichana”. Já dá esperança, levanta a autoestima.  Somos cidadãos brasileiros, não ter receio de se identificar e defender suas raízes.

Joênia Wapichana liderança indígena de Roraima (Foto Yolanda Simone/Amazônia Real)

Amazônia Real – Muitas Joênias surgiram?

Joênia Wapichana – Há crianças que foram registradas como Joênia. Sinto-me bem agradecida pelo reconhecimento. Hoje é espelho de vencer e mostrar que nós somos capazes também. Aquele velho discurso de que a gente queria segregação, não. Nós queremos direitos, nós queremos estar dentro da universidade, nós queremos ser profissionais, mas isso não significa que vamos deixar de ser indígenas. Posso ser indígena aqui em Roraima e lá nos Estados Unidos. Isso não vai tirar a minha identidade, isso é um trabalho que eu comecei desde cedo, que é a questão da conscientização desses direitos e o direito à identidade.

Amazônia Real – A senhora se filou ao partido Rede Sustentabilidade?
Joênia Wapichana – Sim, me filiei à Rede Sustentabilidade durante o ATL [Acampamento Terra Livre] em abril deste ano.

 

Amazônia Real – Como a senhora avalia a posição da mulher na política brasileira? 

Joênia Wapichana – A participação da mulher é uma resposta para reverter esse quadro todo que nós vivemos, que é de corrupção, de injustiça.

Amazônia Real – E como é a posição da mulher Wapichana no movimento indígena de Roraima?

Joênia Wapichana – As Wapichana são fortes, conheço muitas guerreiras Wapichana. Muitas professoras Wapichana desenvolvendo programas de educação escolar indígena. Não só elas, mas as Macuxi também. Há várias lideranças fortes. A questão das mulheres indígenas é um ponto de referência porque são as partes que são mais sensatas de todo esse processo de reconhecimento de direito porque ela tem um olhar bem detalhado da situação, olhar de conciliadora, tenta olhar uma solução mais viável para todos. É aquela que aconselha no dia a dia, que mantém um ambiente agradável, também aquela que cuida, que tem aquela preocupação com o futuro. Para mim sempre é uma referência esse olhar da mulher indígena, porque também vem de berço, vem da minha mãe. Eu sempre me inspiro naquela mulher que cuidava dos filhos, que tinha preocupação no café da manhã, os cuidados que tinha que ter com as plantas e de manter todo cuidado no meio em que a gente vive. Então, vem daí um pouco da força da mulher Wapichana.

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