Por Haroldo Lima*
Três anos após, ao sair da cadeia nos braços da anistia, o Partido estava lá, clandestino, pequeno, mas vivo. Audaz no aproveitamento das oportunidades, conquistou a legalidade em 1985, e então assumi a Liderança da pequena mas ardorosa bancada comunista na Câmara Federal. O partido que “acabou”, crescia.
Reveses aconteceram, vários. Um deles parecia fatal. A extinção, em 1989, da União Soviética, e com ela o desaparecimento de todo o campo socialista do Leste europeu. Realmente tinha-se a impressão que o socialismo chegara ao fim. Um autor americano, famoso e apressado, correu e publicou logo um livro, “O fim da história”. Um sucesso. Foi um tempo difícil: partidos comunistas mudaram de nome, de programa, de cor, de símbolo.
Mas nem todos. Entre os que não sucumbiram, havia um que contava com algumas dezenas de milhões de filiados, o Partido Comunista da China. E um outro não tão grande, mas do mesmo naipe e mesma idade, o Partido Comunista do Brasil.
O tempo mudava o mundo, alterava tudo, cobria “o chão de verde manto que já coberto foi de neve fria”. Quem não mudasse com o mundo mutante e não encontrasse as veredas do novo existir, cessava a busca do futuro incerto, não tinha chance de sobreviver, perecia.
E foi assim que a China vislumbrou caminhos novos para continuar sua construção socialista, ajustando-se aos novos tempos a às condições chinesas. Enveredou por aí e teve enorme sucesso. O “fim da história” gorou.
Os comunistas do Brasil também enxergaram sendas nunca dantes transitadas. Engajaram-se em um movimento que levou um operário à presidência da República em 2002 e deliberaram participar do governo por ele formado, uma inovação no comunismo.
E o Partido que “acabou” em 1976, e que não tinha mais o que fazer com o “fim da história”, em 1989, projeta-se com deputados, prefeitos, presidentes de agências reguladoras nacionais, governador, ministros e chega a ocupar a Presidência da Câmara e até Presidência da República. Mas, não foi só.
Participa da criação de uma Central de Trabalhadoras e Trabalhadores, da organização de uma série de entidades democráticas e populares, da aglutinação da mocidade na União da Juventude Socialista, e da continuidade combativa da União Nacional dos Estudantes e União Brasileira dos Estudantes Secundaristas.
Agora, em 9 de julho de 2017, o PC do Brasil convocou o seu 14º Congresso Nacional, a ser realizado em novembro. A saga comunista se renova.
Um Projeto de Resolução foi aprovado para nortear os debates que se seguirão. Servirá como base para uma reflexão sobre a prática política no Brasil nos últimos anos. Fala da realidade viva, realça vitórias conquistadas, aponta debilidades e erros, faz críticas e autocríticas. Refere-se à situação do mundo e do Brasil.
Um mundo multipolar vai se impondo
O Projeto começa por dar uma olhada panorâmica no mundo. Identifica, de imediato, os macro movimentos definidores do tempo presente: a deterioração do poderio dos EUA, a emergência da China, o enfraquecimento da União Europeia, a proeminência dos BRICS, a recuperação da Rússia, o aparecimento do Irã, a nova arquitetura financeira que vai se estruturando em torno da China, e que tem como marco fulgurante a Nova Rota da Seda (One Belt, One Road – Um Cinturão, Uma Rota), promotora do maior projeto de construção de infraestrutura de que se tem notícia no planeta.
O mundo unipolar, galvanizado pelos EUA, vai dando lugar a uma multipolaridade, em que aparecem a China socialista, a Rússia, novos blocos de força. O eixo geoeconômico do mundo se desloca para o Oriente.
O Projeto mostra o capitalismo provocando impasses no mundo, como na Europa, onde Nações são desestruturadas; o socialismo, que passou por uma derrota estratégica, desenvolvendo-se em países importantes, sinalizando o rumo a diversos outros.
O Projeto mostra, como uma revelação, esse dado importantíssimo, cuidadosamente escondido dos povos pela grande mídia internacional, inclusive a brasileira, que mais de 20 % da população do planeta vive e se desenvolve bem em países socialistas ou que caminham para o socialismo, em Estados dirigidos por partidos comunistas, na China, Vietnam, Cuba, Coréia do Norte e Laos. O sigilo dessa informação é mantido para que ela não sirva de exemplo aos povos do mundo, o que poderia precipitar a ruína do capitalismo.
A China é portadora da notícia mais espetacular, a de que sua economia, de base socialista, que era desprezível há pouco tempo, acabou de ultrapassar a dos EUA sob o critério da Paridade do Poder de Compra e, por conseguinte, é a primeira economia do mundo atual!
No Brasil, um legado positivo, com debilidades e erros
Na parte nacional, o Projeto aprecia o legado do ciclo dos governos progressistas de Lula e Dilma. Considera que esse foi um período de avanço para o Brasil, onde o país participou do concerto das Nações com soberania e vigor, retomou e reorientou seu desenvolvimento, aprofundou sua democracia e promoveu progresso social.
O legado positivo desse ciclo é visto sob quatro eixos:
1) a política externa de inserção soberana do Brasil, no qual o país se aproximou do novo eixo geopolítico mundial através dos BRICS e batalhou pela integração da América do Sul;
2) a recomposição do Estado nacional para alavancar o desenvolvimento do país, com esforços para conformar um Estado de base sólida, moderna e capaz de se planejar;
3) a associação feita entre crescimento e inclusão social, onde o destaque foi ter tirado o Brasil do mapa da fome da ONU, para o qual tende agora a voltar, a criação de mais de 20 milhões de empregos entre 2003 e 2012, e um salário mínimo que saltou de US$86,21, quando Lula assumiu, e foi para US$305 em 2014;
4) o aprofundamento da construção democrática com a criação de secretarias especiais para promover direitos, aumentar a representação das mulheres, o combate ao racismo e o funcionamento das Comissões da Verdade para apurar o ocorrido na época da ditadura.
O Projeto trata também dos erros havidos no ciclo progressista em exame.
Considera um “erro grave” a manutenção da estrutura conservadora do Estado, com a não realização de uma Reforma Política democrática que libertasse a representação política do sistema financeiro e, por exemplo, proibisse o financiamento empresarial das eleições, cortando pela raiz a base da corrupção eleitoral.
Critica a adoção de um maroto critério chamado “republicano”, que reforçou o corporativismo e a direita no Judiciário, no Ministério Público, na Polícia Federal, desconsiderando a vontade do povo revelada nas eleições.
Qualifica como grave a manutenção do monopólio dos meios de comunicação e o fortalecimento da grande mídia com polpudas verbas publicitárias, perdendo-se a oportunidade de se criar um forte canal de TV estatal e de se desenvolver rede de rádio e tv independentes, comunitárias ou públicas. A defesa das ideias progressistas padeceu dessa extrema deficiência, a de que a comunicação em escala era monopolizada pela direita.
Deplora ter-se deixado que a bandeira do combate à corrupção escapasse das mãos da esquerda, e fosse assumida por magistrados e procuradores de direita, militantes incubados de causas retrógradas, despreocupados com o Brasil, ou por políticos arrasados, hipócritas e corruptos.
Aponta que a educação, que se ampliou, não serviu porem à elevação do nível de consciência política da população, não lhe transmitiu a visão de um Projeto nacional que a contagiasse e, em decorrência, o governo progressista e a esquerda perderam, em boa medida, a confiança do povo.
Lamenta o prevalecimento de uma política econômica híbrida, com fortes concessões ao neoliberalismo, a partir do que o desenvolvimento não se fez a taxas robustas, nem teve prioridades nítidas. O governo não se movia por um objetivo desenvolvimentista firme, coerente e inabalável. Na área de petróleo, por exemplo, suspendeu por cinco anos os leilões de concessão de blocos exploratórios, fazendo com que a área de exploração de petróleo no Brasil e na Petrobras atingisse o nível mais baixo dos últimos 20 anos e empresas brasileiras para-petroleiras saíssem do mercado.
Lastima que, mesmo no período 2007-2012, quando se estabeleceu uma correlação de forças bastante favorável, nossos governos de Lula e Dilma não fizeram as reformas estruturais de que o país tanto carece.
As contribuições do PCdoB, suas insuficiências e erros
O Projeto de Resolução de 09.07.2017 faz também uma apreciação sobre a participação do PC do B nesse ciclo progressista, onde são indicadas suas contribuições específicas, suas deficiências e erros.
Entre as suas contribuições, está o esforço permanente do Partido de realçar os objetivos nacionais de desenvolvimento do país, relacionando-os sempre com as bandeiras democráticas e sociais e indicando a mobilização política do povo como o fator mais eficaz para se alcançar conquistas. Está também a gestão empreendida em ministérios, agências reguladoras, e outros órgãos, e sua atuação marcante na Câmara dos Deputados e no Senado. O Projeto aponta também deficiências e erros do PC do B.
Afirma terem sido limitadas e de pequeno alcance as iniciativas do Partido para persuadir o governo a fazer, por exemplo, uma reforma democrática do Estado.
Da mesma maneira, embora divergissem, os comunistas não confrontaram o governo, eventualmente de público, quando este aplicava o falso critério do “republicanismo”, que perdurou como se fosse algo avançado, e que serviu ao corporativismo de órgãos estatais e à direita.
Também, embora discordando, e divergindo em certa medida, o Partido não foi suficientemente enfático, nem expressou de público sua inconformidade com a ausência de iniciativas para se proceder à quebra dos oligopólios de comunicação e a se promover uma democratização desse setor.
Ademais, não se opôs resolutamente ao processo de indicações para o Judiciário, Ministério Público e Polícia Federal feitas pelas corporações, quando o governo eleito pelo povo abdicava de sua obrigação em constituir esses e outros órgãos com gente sintonizada com o resultado das urnas. Organismos assim formados, transformaram-se em bases para solapar o governo constitucional.
No Brasil golpeado, reconquistar a democracia é decisivo
O Projeto termina com indicações precisas sobre o que cabe ao Partido fazer na conjuntura complexa porque passamos: oposição firme ao governo golpista e às suas reformas; batalhar por uma Frente Ampla de entidades, setores e personalidades, constituída para restaurar a democracia e por em praticar um programa nacional de desenvolvimento, que respeite o Estado Democrático de Direito, contenha a violência e combata a corrupção.
O Partido deve buscar a união da esquerda na concretização dessa Frente e, em meio às disputas pelas saídas imediatas da crise, três palavras de ordem sintetizam nossa orientação: barrar as antirreformas, Fora Temer e Diretas Já.
**Haroldo Lima é membro da Comissão Política Nacional do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil