Em 23 de agosto de 2017, o Presidente Michel Temer emitiu um decreto revogando a RENCA (Reserva Nacional de Cobre e seus Associados), uma área do tamanho da Suíça localizada no lado norte do Rio Amazonas em partes dos Estados do Pará e Amapá. O Ministério do Meio Ambiente não havia sido consultado e os ambientalistas e o público em geral no Brasil foram pegos de surpresa. Na verdade, em março o governo Temer já havia anunciado sua intenção de revogar a RENCA em um congresso de empresas de mineração no Canadá. A escolha do local é reveladora.
Uma tempestade de críticas no Brasil e no exterior (ver aqui, aqui, aqui, aqui e aqui) levou Temer a “revogar” o decreto de 28 de agosto e substituí-lo por um novo. No entanto, esta “revogação” amplamente apregoada não significa cessar a abolição da reserva, já que o novo decreto meramente acrescentou uma afirmação de que as áreas protegidas e as normas ambientais seriam respeitadas. Evidentemente, essas normas já estavam em vigor, e o decreto original implicitamente presumiu que elas permaneceriam assim.
No dia 30 de agosto, um juiz federal emitiu uma liminar que suspendeu o decreto, e opinou que o assunto deve ser decidido pelo Congresso Nacional. No entanto, o Congresso Nacional é atualmente dominado por representantes com postura antiambiental (ver aqui, aqui e aqui). Além disso, liminares como esta são facilmente revertidas pelas partes interessadas, tais como o governo presidencial, pela busca de juízes amigáveis para emitir uma decisão revogando a liminar. Isso tem ocorrido em muitas ocasiões quando decisões para travar a construção de barragens, tais como Belo Monte, foram derrubadas em poucos dias.
Figura 1: A Mina Carajás no estado do Pará é a maior mina de ferro do mundo. Imagem do Google Earth.
A RENCA não foi criada para fins de conservação, mas sim como um ato de ditadura militar de 1964 a 1985 para preservar uma reserva estratégica de jazidas minerais, para não permitir que empresas internacionais de mineração exaurissem as jazidas e exportassem os minérios, como, por exemplo, tinha acontecido com a jazida de manganês em outra parte do Amapá. No entanto, na prática, a existência da RENCA evitou a mineração em grande escala, assim ajudando proteger o ambiente nesta vasta área, tanto dentro como fora das áreas legalmente protegidas.
Em um editorial, a Folha de São Paulo considerou a reação negativa da opinião pública “exagerada”. Embora sempre seja possível exagerar ameaças ambientais, e algumas declarações de políticos e outros podem ser interpretadas como hipérboles, abolir a RENCA é realmente uma ameaça ao meio ambiente e às populações tradicionais nesta área altamente biodiversa e relativamente não perturbada.
A RENCA contém nove áreas protegidas. Três destas são do tipo “proteção integral”, onde a mineração é proibida. Duas são terras indígenas, que atualmente não permitem a mineração. No entanto, um projeto de lei, de autoria do senador Romero Jucá (cuja fortuna famíliar resulta de mineração na Amazônia), está avançando lentamente através do Congresso Nacional para abrir as terras indígenas para mineração. Os membros da Comissão no Congresso tratando desse projeto de lei têm recebido grandes contribuições de campanha da Vale (anteriormente Companhia Vale do Rio Doce, ou CVRD), que é uma das maiores empresas de mineração do mundo. As outras quatro áreas protegidas já permitem a mineração, desde que esta disposição esteja incluída no plano de manejo da área em questão. Isto, é claro, pode ser sempre inserido nos planos por meio de pressão sobre os funcionários pertinentes.
Figura 2: Mapa do Instituto Socioambiental (ISA). Clique aqui para ir na fonte.
A história recente, como no caso das reservas Jamanxim na rodovia BR-163, indica um padrão de remover a proteção, alterando a classificação da totalidade ou de partes de unidades de conservação existentes, por exemplo, convertendo-as em uma categoria sem dentes: “áreas de proteção ambiental” (APAs), que permitem a mineração e propriedades privadas, com direito a desmatamento (ver aqui, aqui, aqui, aqui e aqui). Uma proposta apoiada pelo Presidente Temer para remover um milhão de hectares de áreas protegidas no sul do Estado do Amazonas é coincidente com uma infinidade de reivindicações de mineração nessas áreas (ver aqui, aqui, aqui, e aqui). Embora muito melhor do que serem desprotegidas, mesmo áreas protegidas onde é proibido o desmatamento não são imunes à perda de floresta. A área desmatada até 2014 em cada área protegida na Amazônia brasileira está disponível aqui.
Amapá é o menos desmatado dos nove estados que compõem a Amazônia Legal brasileira. Atualmente, a RENCA é principalmente ocupada por populações tradicionais e indígenas que cortam pouca floresta. Só 0,33% da área foram desmatadas até agora. Como é o caso em muitas partes da Amazônia, a área sofre do impacto de garimpeiros ilegais de ouro, mas o que muda com a dissolução da RENCA é a perspectiva de mineração em escala industrial. Quando isto começar, espera-se que o quadro para desmatamento mude. Com a abertura de estradas até cada local de mineração, pode-se esperar o processo de invasão por grileiros, fazendeiros, posseiros individuais e agricultores sem-terra organizados, levando ao processo de desmatamento que tem sido visto muitas vezes em outras partes da Amazônia.
Mesmo que a mineração seja limitada aos 30% da RENCA que estão fora das áreas protegidas, estes novos atores teriam impactos sobre a floresta e os habitantes tradicionais.
A presunção de que o que é proibido pelas leis do Brasil ou pela Constituição simplesmente não vai acontecer na vida real é muito ingênua. Afinal de contas, a barragem de Belo Monte foi bem descrita pelo Ministério Público Federal em Belém como “totalmente ilegal“, mas hoje ela existe no rio Xingu como fato concreto (ver aqui e aqui). As empresas de mineração canadenses que o governo está convidando para a área são de tamanho suficiente para mudar a história em seu favor.
Uma ilustração do perigo para área da RENCA é fornecida pelo desastre de Mariana em novembro de 2015, no Estado de Minas Gerais (ver aqui, aqui, aqui e aqui). Neste caso, uma barragem de contenção de rejeitos de mineração quebrou, destruindo uma pequena cidade a jusante, matando 19 pessoas e destruindo quase toda a vida aquática no rio Doce – um dos grandes rios do Brasil. Que a Vale poderia causar um desastre desta magnitude e escapar impune (ver aqui, aqui, aqui e aqui), sugere que empresas deste tamanho são mais poderosas do que qualquer instância do governo brasileiro.
Este texto é traduzido de uma versão em inglês publicada no site da Mongabay, disponível aqui.
A fotografia que ilustra este artigo é mostra a exploração de minério de ferro na floresta amazônica em Carajá, no Pará, em 2005 (Foto: Alberto Cesar Araújo/Amazônia Real)
Philip M. Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e também coordena o INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) dos Serviços Ambientais da Amazônia. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 500 publicações científicas e mais de 200 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis neste link.