por Keka Werneck, especial para a Amazônia Real
Cuiabá (MT) – Indígenas das etnias Kayabi, Munduruku e Apiaká, que vivem em aldeias banhadas pelo rio Teles Pires, pediram ao Ministério Público Federal (MPF) no Mato Grosso e no Pará uma ação na Justiça de suspensão da Licença de Operação (LO) da Usina Hidrelétrica São Manoel. A licença foi concedida no último dia 5 de setembro pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Com o licenciamento, a empresa que administra a usina poderá encher o reservatório.
Seis lideranças das três etnias Munduruku, Kayabi e Apiaká vão a Brasília tratar do assunto com a Procuradoria Geral da República (PGR), entre os dias 27 e 29 deste mês, e com a Fundação Nacional do Índio (Funai). Eles afirmam que a hidrelétrica São Manoel é uma “grande ameaça” aos rios, florestas, animais, peixes e patrimônio histórico e cultural dos antepassados.
“Considerando as várias falhas que ainda têm que ser vistas e resolvidas antes de ser concedida a Licença de Operação, e que até o momento, a empresa não tem nenhuma estratégia para mitigar todos estes impactos, é evidente que essa decisão do Ibama foi equivocada. Sendo assim, solicitamos providências urgentes do MPF, no sentido de pedir na justiça a suspensão da LO de São Manoel, devido a sua ilegalidade e os riscos que estamos correndo com essa usina e outras barragens no rio Teles Pires”, disse em cartar enviada no dia 6 de setembro ao procurador da República Malê de Aragão, em Sinop (MT), a liderança da etnia Apiaká da Aldeia Mayrowi, Darlisson Apiaká.
Em outra carta protocolada no último dia 13 de setembro e endereçada aos procuradores Frazão, Felício Pontes, que atua no MPF de Belém, e Luís Camões Boaventura, de Santarém, ambas cidades do Pará, o Povo Munduruku afirma que uma grande parte do local sagrado, chamado de “Karobixexe”, está destruída pelas obras das hidrelétricas, além de São Manoel, a usina de Teles Pires.
O local sagrado é o cemitério onde estava sepultado os restos mortais de parentes às margens do rio Teles Pires. “Nossos antepassados choram e pedem socorro”, diz o documento assinado por Adaísio Kiriki Munduruku, presidente da Associação Indígena Pusuru. Ele mora na aldeia Morro do Kurap do Rio Cururu, em Jacareacanga (PA). “Todos estão tristes, mas vão resistir no local”, completou o líder da Pusuru.
Em entrevista à Amazônia Real o indígena Tavary Kayabi, da Associação Indígena Kawaip Kayabi, disse que, com o Licenciamento de Operação, as condições do rio Teles Pires podem piorar.
“A água do rio já não é mais a mesma, está parada, não é cristalina como antes e desce cheia de lodo, os peixes já morreram aqui e, com o licenciamento, a coisa apertou realmente, não sabemos o que vai ser de nós”, disse ele, que mora Aldeia Dinossauro, no município de Apiacás, extremo Norte de Mato Grosso. “O que a gente quer é que o Ministério Público suspenda essa licença”, afirmou ele.
Procurado pela reportagem, o Ministério Público Federal em Sinop (MT) informou que o procurador Malê Frazão acompanha o caso e analisa a situação para tomar as medidas cabíveis.
Desequilíbrio ambiental
O cientista Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), especialista no estudo de impactos socioambientais de obras de hidrelétricas na Amazônia, diz que a usina São Manoel, localizada a apenas 700 metros da terra indígena Kayabí, já provocou uma série de confrontos com os povos indígenas.
“Assim como aconteceu com outras barragens, espera-se que a represa de São Manoel afeta negativamente peixes e tartarugas que são fontes vitais de alimento para os grupos indígenas Kayabí, Munduruku e Apiacá. Também destruiu os locais sagrados, bem como sepulturas e locais arqueológicos que são reverenciados pelo grupo, entre muitos outros impactos”, disse ele no artigo “São Manoel: Barragem amazônica derrota Ibama”.
No imaginário indígena, as usinas hidrelétricas formam um “monstro grande”, cheios de braços e pernas. As lideranças denunciam que desde o início do empreendimento no rio Teles Pires não foram devidamente consultadas e respeitados.
Dionísio Kaba Munduruku, da Associação Indígena Pussuru, que mora na aldeia Sai Cinza, em Jacareacanga (PA), afirma que, em nome de projetos governamentais em aliança com grandes empreendimentos, estão passando por cima dos interesses dos povos amazônicos. “Ninguém quer saber o que estamos pensando”, reage.
Cândido Waro Munduruku, da Associação Indígena Dace, reforça que a usina está causando “destruição e impacto nas terras indígenas da região”. Ele mora na aldeia Teles Pires do Baixo Rio Teles Pires e vê com tristeza a morte de peixes, jacarés, tracajás, botos e muitas outras espécies. “É triste ver o rio todo sujo e a gente fica mais triste ainda porque nunca tinha visto isso nas nossas vidas antes das usinas”.
Ele ressalta que os pais estão preocupados com o futuro das crianças e com o que vão comer. “É medo da fome, porque os peixes e a caça vão sumir”. Ele compara o rio e a floresta para os indígenas com o supermercado das cidades. “É lá que buscamos alimentos para nossos filhos e esposas”, explica.
Cândido afirma que, apesar das dificuldades, ainda sonham com uma mudança de rumos, influenciada por pressão internacional. “Nunca vou desistir da minha luta, já fui aos Estados Unidos para levar as preocupações do meu povo e mostrar nossas tristezas fora do Brasil. O que o governo brasileiro e a empresa fizeram com a gente, destruindo nossos lugares sagrados e destruindo os nossos rios aonde a gente banha, lava roupas e bebe água, é triste”.
Ibama reconheceu impactos
Com um investimento de mais de R$ 2 bilhões, a usina hidrlétrica São Manoel é uma das 43 obras com barragens existentes ou planejadas na bacia do Tapajós. Está localizada entre Jacareacanga, no Pará, e Paranaí e Apiacás, em Mato Grosso. A obra é administrada pela Empresa de Energia São Manoel (EESM), consórcio responsável pela construção da hidrelétrica e formado pelos acionistas EDP Brasil S.A., Furnas Centrais Elétricas e China Three Gorges Corporation (CTG).
Ao conceder a Licença de Operação à empresa EESM, o Ibama reconheceu, em nota enviada à reportagem da Amazônia Real, os impactos socioambientais provocados pela hidrelétrica São Manoel, tanto que para expedir a LO impôs cerca de 100 condicionantes para que usina hidrelétrica opere de forma plena no rio Teles Pires.
Segundo o Ibama, algumas das condicionantes, inclusive, são resquícios de irregularidades promovidas pela empresa São Manoel durante o processo de instalação do empreendimento. Esses problemas foram incorporados as condicionantes para a LO. Já outras situações, diz o instituto, foram revertidas em aplicações de multas.
No documento da LO, o Ibama diz que reconhece uma das principais reclamações das comunidades indígenas locais, que é a grande diminuição de peixes na região, devido à construção do empreendimento.
O Ibama afirma também, em nota, que determinou que a EESM elabore um programa para recuperar, resgatar e povoar a ictiofauna (conjunto de espécies de peixes) do Teles Pires.
Apesar do histórico de problemas, o Ibama disse que concedeu a LO a São Manoel por entender que as irregularidades não são graves ao ponto de proibir a operação da usina. “Foram identificadas pendências relacionadas ao cumprimento de condicionantes da LI [Licença de Instalação] que não resultam em impedimento para a emissão da LO. Algumas foram incorporadas como condicionantes da LO, outras foram encaminhadas para autuação por caracterizarem irregularidades”, salientou o órgão ambiental, por meio da assessoria de imprensa.
Para conceder a LO, o Ibama diz que também determinou que a Empresa de Energia São Manoel estabeleça um Termo de Ajustamento de Conduta com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). “Tal medida é com o objetivo de reparar as violações aos cemitérios e locais sagrados dos indígenas, que foram violados durante a instalação da usina hidrelétrica”, destacou em nota o órgão federal.
O Ibama reiterou ainda, conforme a nota enviada à reportagem, que para manter a Licença de Operação, a empresa São Manoel precisa cumprir com as obrigações ambientais: “Esta licença de operação é válida pelo período de 04 (quatro) anos, a contar da presente data [5 de setembro], estando sua validade condicionada ao cumprimento das condicionantes constantes no verso deste documento, que deverão ser atendidas dentro dos respectivos prazos estabelecidos […]”.
O órgão ambiental brasileiro disse ainda que a “LO concedida a São Manoel não autoriza a supressão da vegetação local.” “O documento também são substitui a aprovação, fiscalização ou licenciamento de outros órgãos reguladores, como a Funai”.
Procurada, a EESM informou à reportagem que em 2018 vai encher o reservatório e começar a produzir energia elétrica.
Para Darlisson Apiaká, liderança Apiaka da Aldeia Mayrowi, no rio Teles Pires, “tudo isso deixa muita preocupação com as futuras gerações e também com a poluição dos rios onde utilizamos a água todos os dias para beber.”
“Os empreendimentos estão enchendo os reservatórios, deixando a vegetação toda submersa, tirando o oxigênio da água e produzindo gás metano, com a água ficando inutilizável”, concluiu Darlisson Apiaká.
Em julho, um grupo de 200 indígenas Munduruku, sendo a maioria mulheres e 15 crianças, ocupou o canteiro de obras da hidrelétrica São Manoel em protesto contra os impactos socioambientais da barragem no rio Teles Pires. A desocupação do canteiro aconteceu após a Justiça Federal, a pedido do MPF em Sinop (MT), determinar que o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), general Franklimberg Ribeiro de Freitas, se reunisse com as lideranças. Leia aqui.
Foto: Juliana Pesqueira/FTP