Por Luís Eduardo Gomes, do Sul21
Segundo a juíza, ao criar regras para dificultar a fiscalização e tentar mudar os conceitos de condição análoga à escravidão, o governo federal, na prática, está liberando o trabalho nestas condições no Brasil.
“O Brasil conseguiu, especialmente na alteração do [artigo] 149 do Código Penal, criar um conceito de trabalho em condição análoga à escravidão extremamente moderno, inclusive elogiado pela OIT, porque considera que só a prática de jornada exaustiva já é situação análoga a de escravo. Se nós estamos em um país em que existe uma relação de troca entre capital e trabalho, se eu trabalho sem ter a remuneração em troca, eu estou trabalhando em condição de escravidão”, afirmou Valdete.
O artigo 149 do Código Penal considera como condição análoga à escravidão submeter alguém a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, “quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. A redação da lei diz que a prática se configura, dentre outras formas, quando o empregador cerceia o uso de qualquer meio de transporte para reter o funcionário em local de trabalho, mantém vigilância ostensiva no local de trabalho para forçar a permanência, apodera-se de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, etc.
Valdete destaca que está sendo feita uma confusão sobre o conceito de jornada exaustiva para tentar criticar a legislação vigente por parte dos defensores da portaria. “A jornada exaustiva é uma jornada em uma condição ruim de trabalho e por horas além daquelas permitidas pela Constituição federal. É claro que não tem como comparar a uma situação de trabalho de um juiz, de um ministro, de determinado profissional, porque é uma situação de trabalho, por exemplo, de quem extrai cana de açúcar, de quem trabalha em indústria, quer dizer, existem condições de trabalho que são penosas em si. Se a pessoa, numa condição de trabalho penoso, ainda trabalha além das horas que a Constituição permite, isso configura uma jornada exaustiva e, portanto, condição análoga a de escravidão. O que a portaria faz? Ela pega toda essa evolução do conceito de trabalho escravo que foi construída no Brasil nos últimos anos e tenta destruir”, diz a juíza.
Ela destaca ainda que esta não é uma medida isolada, mas vem no bojo de outras que também buscam enfraquecer a fiscalização de irregularidades trabalhistas. “Para ter uma ideia, houve um corte de orçamento para fiscalização do trabalho escravo de 70%. A portaria não é um ato isolado. Cortaram o orçamento, precarizam completamente as condições dos auditores que fiscalizam e agora vem a portaria tentando mudar o próprio conceito e impedir que os exploradores do trabalho escravo tenham seus nomes nas chamadas listas sujas. É uma declaração de guerra ao estado social”, afirmou.
A juíza critica o fato de a portaria determinar que o fiscal do trabalho terá de ser acompanhado por um policial militar em sua ação, impor uma série de regras que buscam mudar o entendimento de trabalho em condição análoga à escravidão, reduzindo-a apenas à privação da liberdade de ir e vir. “Concretamente, o que a portaria pretende é impedir que a fiscalização ocorra. Se ocorrer, dificultar o fato dessa fiscalização ter o encaminhamento e dificultar também a inclusão desse empregador numa lista que o aponte como explorador de trabalho escravo”.
No entanto, Valdete salienta que trata-se de uma portaria, que terá de conviver com as regras vigentes do Código Penal. “Mas é assustador que haja uma portaria nesse sentido. Hoje, saiu uma notícia de que confederações ligadas à indústria e ao transporte irão publicamente apoiar a portaria. Isso é que é assustador, não é o efeito que a portaria pode ter, porque ela vai ter que conviver com uma lei que diz o contrário dela, mas é o efeito simbólico de uma presidência da República ter a coragem de editar uma portaria com esse teor, que praticamente libera a exploração de trabalho escravo no Brasil”.
Presidente estadual da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB-RS), Guiomar Vidor destaca que o objetivo da plenária foi intensificar a mobilização para resistência ao que chamou de “contrarreforma trabalhista”. Segundo ele, ainda existe um ambiente de incertezas a respeito de como serão aplicada as mudanças na CLT propostas na reforma, o que inclusive geraria incertezas entre empresários e operadores do Direito do Trabalho.
No entanto, pondera que, logo após a reforma entrar em vigor, no próximo dia 11 de novembro, poderão ser sentidos os efeitos de mudanças como a permissão para contratação de trabalhadores em jornada intermitente, sem carga horária e remuneração mensais definidas, a criação da compensação de horas feitas além da jornada de trabalho em lugar do pagamento de horas extras e o fato de acordos coletivos passarem a prevalecer sobre a legislação trabalhista. “Esses fatores podem estar na linha de frente pela volúpia que os empresários têm de enxugar seus custos. A lei permite, em tese, que isso seja feito. Agora, nós temos princípios constitucionais que precisam ser respeitados”. diz.
Segundo Guiomar, as centrais sindicais estão planejando realizar, no próximo dia 10 de novembro, véspera da entrada em vigor da legislação, um dia nacional de mobilizações, paralisações e greves para chamar a atenção da sociedade sobre o teor da reforma. Além disso, ele espera que ao menos parte da nova legislação seja considerada inconstitucional.
Em sua fala, Valdete também destacou que alterações propostas na lei são inconstitucionais em vários aspectos. “Um dos pontos mais graves é que retira do trabalhador o acesso à Justiça do Trabalho. Aliás, o verdadeiro objetivo dessa reforma é acabar com a justiça do trabalho e isto passa por enfraquecer os sindicatos que representam os trabalhadores para acabar com a resistência organizada”, disse.
Para ela, a principal preocupação imediata com a entrada em vigor da reforma é que ela poderá afetar processos já em curso na Justiça do Trabalho. “Como ela estabelece a ideia de sucumbência, isto é, que o trabalhador mesmo que beneficiário da assistência judiciária gratuita tenha que pagar honorários de perito e de advogado daquilo que não conseguir provar, o maior risco imediato é que essa regra seja aplicada aos contratos em curso, porque o trabalhador quando ingressou com a ação não contava com esse revés, e aí se tiver que contar a partir de agora, sem dúvida nenhuma isso irá causar um prejuízo”.
Já o procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT-RS), Ricardo Garcia, destacou que a luta contra a CLT vem sendo travada desde sua criação e destacou que ela foi bem sucedida no governo Temer por estarmos vivendo um momento de retirada de direitos em diversas frentes. “Estamos vivendo uma ditadura, em que estão retirando direitos, acabando com a liberdade de organização, mutilando o judiciário, dificultando a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos. Atualmente, várias instituições estão se posicionando contra a reforma trabalhista, como a magistratura brasileira e a OAB, mas isto não é suficiente, porque acima de nós, está o Supremo Tribunal Federal, com uma posição a favor da reforma já bastante conhecida”, afirmou.
O deputado federal Assis Melo (PCdoB-RS), que faz parte da Comissão do Trabalho da Câmara dos Deputados, último palestrante do evento, destacou ainda que a retirada de direitos trabalhistas continua em andamento no Congresso Nacional. “Não parou na reforma trabalhista e a gente tem a sensação de que parecer ter uma gaveta lá na comissão do trabalho, porque sempre tem algum projeto para mudar uma relação de trabalho, para piorar as condições dos trabalhadores”, disse o parlamentar, que considera a reforma como “verdadeiro crime”.
Ataques a Valdete
Assis Melo também destacou em sua fala os ataques que a juíza Valdete vem sofrendo, tanto em redes sociais como represálias institucionais, por se manifestar contra a reforma trabalhista. Ele afirmou que caba aos trabalhadores saírem em defesa da magistrada. “Não podemos ouvir a juíza vir aqui dizer que está sofrendo ameaça e acharmos normal. Porque isto é o mesmo que um companheiro morrer na fábrica, os outros trabalhadores limparem o sangue e seguirem trabalhando porque acham que é normal o que aconteceu. Precisamos nos indignar. O coração dessa gente não bate pelo trabalhador”, disse.
Após o evento, Valdete disse considerar que o Brasil já vive um estado de exceção em que há represálias para quem se manifesta contrariamente à agenda de mudanças e retirada de direitos que vêm sendo imposta. “E não sou só eu, existem colegas que estão sofrendo isso por todo o Brasil. Recentemente, teve o caso da procuradora lá do Rio Grande do Norte que está sofrendo um verdadeiro bullying institucionalizado na cidade em que vive para tentar coibir a sua atuação. Quer dizer, eu não acho que eu seja uma vítima, acho que todas as pessoas que hoje estão ousando se levantar e falar contra o estado de exceção que a gente vive, estão sofrendo algum tipo de represália. O que demonstra que nós não estamos vivendo uma democracia”, disse.
A juíza referiu-se ao caso da procuradora Ileana Mousinho, do Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Norte, que está sendo alvo de ataques por autuar empresas terceirizadas do grupo Riachuelo por violações de direitos trabalhistas.
No entanto, Valdete destaca que mais preocupante do que ataques em redes sociais e pela mídia, como ela também sofreu nos últimos meses, são as represálias institucionais que estão sendo aplicadas. “O que a gente tem é uma tentativa de coibição da nossa atuação ligando manifestações públicas à atividade jurisdicional. Isso é grave. Tentar coibir a fala do juiz, do procurador, do representante do Ministério Público através de uma represália correicional, digamos assim, dentro da própria instituição. Existe também um ataque midiático, no Facebook, etc. Esse é um ataque mais difícil de ser identificado, grave também, me parece, mas um pouco mais honesto, digamos assim. O problema é quando a gente mistura a manifestação de alguém como cidadão com a atuação que ele tem institucional”, afirmou.
Após a conclusão da plenária, os participantes realizaram uma marcha da Paróquia da Pompéia, onde o evento foi realizado, até a Esquina Democrática, no Centro de Porto Alegre.