Comunicadora popular, Gizele Martins diz que “objetivo do Estado não é segurança pública, e sim controlar nossas vidas”
“A gente nunca vê uma intervenção na favela ou algum tipo de investimento em saúde, educação. Temos mais de mil favelas no Rio de Janeiro que em nenhum momento receberam qualquer tipo de direito à moradia”. A afirmação é da comunicadora comunitária Gizele Martins, que também é moradora do Complexo Maré, um dos maiores do estado do Rio de Janeiro, ao comentar sobre a intervenção militar decretada pelo governo golpista de Michel Temer (MDB), e pela Câmara de Deputados, na madrugada desta terça-feira (20).
Em entrevista à Rádio Brasil de Fato, Martins criticou o caráter antidemocrático da medida já que, segundo ela, em nenhum momento os moradores foram consultados pela intervenção militar. “A intervenção que a gente quer, que a gente nunca consegue, é na escola, numa universidade pública, na UERJ [Universidade Estadual do Rio de Janeiro], é intervenção na saúde, e não intervenção de soldado, tirando a garantia dos nossos direitos”, disse a comunicadora.
Confira na íntegra a entrevista concedida aos jornalistas Anelize Moreira e Leonardo Fernandes:
Brasil de Fato: Você que vive no Complexo da Maré e experimenta essa intervenção militar que não é de agora. O que os moradores da favela avaliam essa intervenção de decreto do Michel Temer?
Gisele Martins: Eu sou moradora da favela da Maré, o conjunto de favelas da Maré tem 16 favelas e aproximadamente 140 mil moradores. Nós, moradores dessa favela, sofremos uma intervenção parecida em 2014 e 2015 na Copa do Mundo. No momento em que todo país estava comemorando a Copa do Mundo, nós estávamos sofrendo essa militarização e intervenção do Exército dentro da nossa favela.
A gente teve um soldado para cada 75 moradores. Eu como moradora desde que eu nasci, eu nunca tive um médico ou um professor para 75 moradores da Maré. Mas na minha história tinha um soldado para cada 75 moradores da Maré. E aí a gente sofreu inúmeras ameaças, a nossa comunicação comunitária foi ameaçada, nossa comunicação de base, projeto de base de cultura também foram impedidos. Ou seja, uma verdadeira ditadura dentro da democracia.
E aí a gente recebe agora de forma muito revoltada. E estamos muito assustados e com muito medo dessa nova intervenção que não vai ser só nas favelas do Rio de Janeiro, mas em todo Rio de Janeiro. O que faz aumentar ainda mais a nossa vulnerabilidade dentro desse estado que vem cada vez mais tendo mais pessoas negras faveladas assassinadas nas favelas e periferias. Ou seja, nós estamos muito preocupados com essa notícia e como é que pode? Daqui a pouco vai ter tanque de guerra circulando pela nossa cidade. Que democracia é essa?
Chegaram a fazer alguma consulta para fazer uma intervenção militar como esta?
Em nenhum momento, nem em 2014, nem em 2016, durante as Olimpíadas, e nem agora. O autoritarismo do governo se torna não democrático, atuando e interferindo em nossas vidas. Literalmente interfere em nossas vidas. Somos nós que não vamos conseguir ir de novo para os nossos trabalhos, nem para escolas. Porque quando se tem uma intervenção como essa dentro das favelas, a gente sabe que o número de tiroteio aumenta, que o número de escolas fechadas aumenta, que o número de interrupções na nossa vida passa a ser diária. E aí tem o medo de sair de casa, e não é só isso: é também a invasão.
Em 2014 e 2016 a gente sofreu constantes invasões de soldados e casos até de estupros dentro da favela da Maré. Com inúmeras pessoas assassinadas, com inúmeras pessoas respondendo no tribunal militar, coisa que deveria ser proibida. Agora a gente vai sofrer tudo de novo, e em nenhum momento ninguém perguntou nada pra gente. Eu faço comunicação comunitária na Maré há 15 anos, circulo as favelas da Maré, circulo as favelas do Rio de Janeiro, e em nenhum momento ninguém fala que quer uma intervenção militar.
O que a gente está dizendo, nessa última semana, é que a intervenção que a gente quer, que a gente nunca consegue é na escola, numa universidade pública, na UERJ, é intervenção na saúde, e não intervenção de soldado, tirando a garantia dos nossos direitos, que cada vez mais vem sendo eliminados por um governo como esse, de um golpista, que nós estamos sofrendo em todo o país.
O governo tem argumentado que a relação do Exército com a população é diferenciada, e a população teria mais confiança nos soldados. Isso é assim?
Quando a gente fala sobre a intervenção na Maré em 2014, sobre a intervenção recentemente na Rocinha, na baixada Fluminense, ainda no final do ano passado pra esse ano, a gente vê que não é uma relação como diz a mídia comercial ou como diz o próprio governo golpista. A relação dos soldados com a gente é opressora só pela existência deles dentro da nossa comunidade.
Eu digo opressora porque são revistas constantes. É homem revistando mulher, revistando bolsa, revistando crianças. Na Maré a gente teve crianças de colo com soldado tirando a fralda pra ver se tinha drogas. E aí a gente fala também sobre o racismo. O que é revistar criança de colo pra ver se tem drogas? Isso são estereótipos colocados na cabeça desses soldados. E para que servem esses soldados? É pra servir um governo, seja lá o governo que for, mas que não é pra servir a gente.
Em nenhum momento a gente teve qualquer tipo de polícia, qualquer tipo de militar servindo a uma população. Eles servem a uma dita pátria, sendo que nestes momentos não temos bandeira, não temos nada. O que temos aí é um governo que não representa a gente, que não é legítimo, a gente tem um presidente que a gente não reconhece enquanto presidente, porque ele não foi eleito, e que vem colocar que a população está esperando os soldados. Isso não é verdade.
Como os movimentos vão atuar nesse momento pra monitorar a ação das forças de segurança, caso essa intervenção seja aprovada no Congresso Nacional?
A gente tem alguns grupos de favelas se reunindo. Do final da semana passada pro início desta semana, essas organizações não-governamentais, movimentos sociais de base, vem se reunindo, vem trocando ideias com quem é aliado, que são os partidos de esquerda, as organizações de direitos humanos que funcionam no Rio, nacionais e internacionais.
Na verdade, a gente queria impedir que isso acontecesse, mas como a gente é um movimento de base, e de favela, muito vulnerável, então a gente quer tomar alguma medida internacional, para ter, pelo menos, visibilidade nessas violações que a gente já está esperando que a gente vai sofrer.
É bem claro que essa intervenção não é uma forma de enfrentar o crime. Para o Observatório de Favelas e para as organizações, o que seria necessário para enfrentar de uma outra forma que não atingisse, não penalizasse a população das favelas e da periferia?
Pode parecer meio clichê, mas a gente nunca vê uma intervenção na favela ou algum tipo de investimento em saúde, educação. A gente tem mais de mil favelas no Rio de Janeiro que em nenhum momento receberam qualquer tipo de direito à moradia a essa população negra que saiu da escravatura ou a outras populações que vieram do Nordeste ou outras localidades do nosso país. A gente não tem direito à moradia. Eu, por exemplo, moro numa ocupação. Eu perdi minha casa porque ela foi invadida pelas forças militares e hoje eu moro em uma ocupação. Em nenhum momento tive algum tipo de reparação por ter perdido a minha casa.
Inúmeras pessoas hoje no Rio de Janeiro, moradoras de favelas e periferias perderam as suas casas. Não temos moradia, não tem saneamento; as chuvas da semana passada comprovaram isso. Eu, na Maré, passei quatro dias sem luz e sem água. Não temos investimentos nessas áreas. A Maré tem 44 escolas, metade delas funcionam, mas a outra metade não tem água, não tem ar condicionado, não tem ventilador, não tem professor.
No Rio de Janeiro os professores estão com os salários atrasados. Não temos postos de saúde, mas temos soldados, temos investimentos em segurança pública. Mas quando se fala em segurança pública, a gente fala que segurança pública é lidar também com os outros tipos de direitos e não só polícia, segurança pública não é sinônimo de polícia ou de soldado ou de intervenção militar. A gente compara a Zona Sul ou outro bairro mesmo pobre, com a favela e a periferia, porque para os outros bairros qualquer tipo de segurança pública não é sinônimo de polícia, de tanque de guerra.
Durante 2014, a gente teve R$ 500 milhões investidos para a permanência do Exército na Maré durante 1 ano e 5 meses, mas durante 6 anos a gente teve R$ 3 milhões de investimento em saúde e educação e moradia. Então a gente vê qual é a prioridade desse Estado, desse governo nas nossas vidas, que na verdade é o controle, e é o controle das nossas vidas.
A lógica deles é colocar mais polícia, mas em nenhum momento colocar mais polícia na favela deu certo. E aí a gente também vem questionando no movimento de favelas do Rio, que quem é o traficante de drogas, quem está nas fronteiras do país, quem está deixando o helicóptero, quem está deixando os aviões de armamento e de drogas chegarem nas nossas favelas?
A gente não tem fábricas de armas no Brasil, a gente não tem plantação de maconha, nem de qualquer outra droga na favela. Ou seja, a gente precisa fazer um sério questionamento da relação de direitos humanos com o tema essencial que é segurança pública. Perguntar se o nosso Estado entende o que é segurança pública. Eu acho que eles fingem não entender mas, na verdade, a gente sabe que o objetivo deles é o de controle das nossas vidas, principalmente no momento como esse que a gente está perdendo todos nossos direitos.
Então acho que o tanque aqui não é por acaso. É porque eles querem controlar manifestações dentro das favelas, das periferias e em toda a cidade do Rio de Janeiro.
Edição: Simone Freire