Filha de empregada doméstica, a professora alcançou o doutorado e é uma das principais referências na defesa dos direitos dos negros no Norte. Segundo ela, “a população negra acumula desigualdades em todas as esferas: saúde, educação e perspectiva de vida”.
Por Thais Rezende e Taymã Carneiro, G1 PA, Belém
Para a mulher é tudo mais difícil. A mulher negra, então, tem ainda um fardo maior de discriminações. Ela é atravessada pela questão da raça, pelo fato de ser negra, do gênero, por ser mulher, e ainda por estar condenada à pobreza”, afirma a ativista e professora de artes da Universidade Federal do Pará (UFPA), Zélia Amador de Deus, que participou da criação do sistema de cotas de negros nas universidades e é uma das principais referências do movimento negro na região Norte.
Zélia nasceu em uma fazenda na ilha do Marajó e, desde o primeiro ano de idade, foi criada em Belém pelos avós. “Minha mãe engravidou aos 15 e era mãe solteira, foi empregada doméstica a vida toda, o que é mais uma história que se repete entre as mulheres negras brasileiras. Mas eu tive sorte porque meus avós me incentivaram a estudar. Na verdade eu me safei pela educação. Lembro muito bem da minha avó me dizendo ‘tu és preta, mas não baixa tua cabeça (sic)”, conta.
Égua, mana é uma expressão típica dos paraenses – que nesse caso, remete a admiração – e dá nome a uma série de três reportagens especiais produzidas pelo G1 em alusão ao Dia Internacional da Mulher. As reportagens mostram histórias de atitude, superação e coragem, seja através do voluntariado, no mercado de trabalho ou na luta pelos direitos e que se tornaram exemplos da força da mulher.
Inteligente e esforçada, Zélia foi em busca de seus ideais através dos estudos, que aconteceram em escolas públicas da capital. Ela tinha facilidade com matemática e desde muito jovem ensinava os colegas em troca de dinheiro para pagar o ônibus. Mas, ainda menina, conheceu de perto a discriminação.
“Aos nove, dez anos foi quando senti o que é ser preta. Eu gosto muito de dançar, então me ofereci para uma apresentação que ia ter na escola. Mas entre as meninas eu não havia sido escolhida e questionei isso com a professora. Ela me disse que iam ser só as ‘meninas mais ajeitadinhas’. E eu não era desajeitada, entende?”, lembra a socióloga.
Para Zélia Amador, o racismo no Brasil foi levado às últimas consequências, pois foi o país que mais importou negros no continente americano e o último a abolir a escravatura por lei. Isso, segundo ela, deixou marcas até os dias atuais. “A população negra acumula desde então desigualdades em todas as esferas: saúde, educação, perspectiva de vida, absolutamente todas. O que ocorre é que as elites não se conformam com o combate à desigualdade. A segurança das elites é a desigualdade”.
No caso das mulheres, a pesquisadora afirmou que “as negras sempre foram força de trabalho. Elas não lutaram para poder trabalhar, elas não querem é mais trabalhar de graça, elas querem ser pagas”, afirma. A professora defende que “mesmo que a mulher negra supere a questão da classe social, ela continua sendo mulher e continua sendo negra. Ela permanece sendo discriminada seja pela sua etnia, raça, classe, credos, nacionalidade”, explica.
Militante
O ingresso na universidade pública foi um marco. Embora já estivesse envolvida com movimentos sociais durante o ensino médio, foi na universidade que a política fez ainda mais parte da trajetória de Zélia Amador, que é doutora em Antropologia. “Em 1968, por exemplo, eu estive em manifestações políticas, passeatas, ocupações, era uma época que, nos Estados Unidos, os negros estavam lutando pelos direitos civis, crescia o movimento Black Power”.
Quando começa a dar aulas na UFPA, ainda no período final da ditadura militar, os movimentos sociais que estavam “sufocados” começaram a ganhar força. Em 1978 surge o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR). E no ano seguinte, 1980, Zélia é co-fundadora do Centro de Estudo e Defesa do Negro no Pará (Cedenpa). “A partir desse contexto do início dos anos 80 que o movimento começa a não somente denunciar o racismo, mas pensar políticas públicas de ação afirmativa, a fim de tentar diminuir as desigualdades”, explica.
Em 2001, a professora integrou a comissão brasileira na 3ª Conferência contra o racismo da Organização das Nações Unidas (ONU), em Durban, na África do Sul. “Éramos um grupo forte, articulado, que retorna ao Brasil para cobrar diversas políticas, entre elas o sistema de cotas nas universidade públicas”, relembra.
A educação, defende a pesquisadora, é um dos pontos principais para combater a desigualdade. “A sociedade ainda mata mulheres, comporta a misoginia, perpetua a cultura do estupro. Já o negro quando morre é visto como uma ameaça a menos. Falta empatia. Se colocar no lugar do outro. Conhecer verdadeiramente a história do país. Entender nossa identidade. E isso vem através da educação, com o que trabalho pela vida inteira”, disse.
Zélia Amador é professora de artes da UFPA, doutora em Antropologia e co-fundadora do Centro de Estudos e Defesa do Negro no Pará (Cedenpa).) (Foto: Taymã Carneiro / G1 PA)