Texto de Rosa Maria Marques*
O congelamento por vinte anos os gastos públicos pode acarretar mudanças radicais no funcionamento da sociedade. Em lugar do interesse coletivo, teremos a defesa do interesse do capital portador de juros e o fortalecimento de seu aparato jurídico e repressor
Em 15 de dezembro de 2016, foi publicada no Diário Oficial a Emenda Constitucional 95/16, chamada pelos movimentos sociais de “PEC da morte” desde sua tramitação na Câmara e no Senado. Ela institui um novo regime fiscal na Constituição Brasileira, definindo que os gastos federais – excluídos os juros da dívida pública – serão congelados por vinte anos, tendo como base o efetivo gasto em 2016.
Os valores dos orçamentos dos anos seguintes serão somente atualizados pela inflação e seus valores reais poderão, a depender dos resultados obtidos em termos de equilíbrio fiscal, ser revisados somente depois de dez anos. A justificativa tinha/tem como base o diagnóstico de que todos os males da economia brasileira se devem à suposta escalada desenfreada do gasto público e que, portanto, essa deve ter fim, pois estaria elevando o nível da dívida pública a patamares incontroláveis.
O que há de novidade nessa proposta? Quais são suas consequências? Passados um ano de seis meses de sua aprovação, quais foram os impactos desse novo regime fiscal nas políticas públicas, especialmente nas políticas sociais?
Medida sem paralelo
A adoção de um teto para o gasto público não é novidade, pois já foi assumida em outros países. Contudo, ao se analisar estudo publicado pelo FMI para 89 países, verifica-se que não há paralelo à proposta aqui aprovada (BOVA et al, 2015). Em nenhum lugar o horizonte temporal é tão longo; não incluem no congelamento os gastos sociais; não deixam de fora os juros da dívida pública; e, com exceção de apenas três países pequenos – Dinamarca, Geórgia e Cingapura -, não introduzem na constituição esse dispositivo de controle do gasto público (MARQUES e ANDRADE, 2016). Contrastando com essas experiências, a EC 95/16 abrange o tempo de uma geração, não inclui as despesas com os juros da dívida pública e altera a Constituição. E, apesar de o país estar enfrentando um elevadíssimo nível de desemprego e de conviver com uma destacada desigualdade social, não houve qualquer preocupação em resguardar os programas de transferência de renda dirigidos aos segmentos mais pobres da população e o seguro desemprego.
No Brasil, o freio aplicado ao gasto público tem como objetivo a realização de superávits primários a fim de garantir o pagamento dos detentores da dívida pública. Isso foi realizado a despeito de seus efeitos em provocar a deterioração da capacidade de geração de emprego e renda no país e de seus impactos sobre as políticas sociais. Mesmo que tivéssemos a hipótese de que o gasto atual é adequado – o que não é -, a emenda desconsidera que a população continuará a crescer e envelhecer nesses vinte anos. Isso exige ampliação dos gastos em determinadas área.
Os detentores da dívida, bem como de outras formas assumidas pelo capital fictício, consideram que é possível manter ad eternum a alta rentabilidade de seus “ativos”, sem que tenham de se preocupar com o que ocorre com a produção, com o nível do emprego, com os salários e com os gastos sociais. Eles revelam, assim, seu total descompromisso com as necessidades da população. E a EC 95/16 implica submeter totalmente o funcionamento do Estado brasileiro aos interesses dos detentores da dívida.
No Brasil, o freio aplicado ao gasto público tem como objetivo a realização de superávits primários a fim de garantir o pagamento dos detentores da dívida pública. Isso foi feito a despeito de seus efeitos em provocar a deterioração da capacidade de geração de emprego e renda no país e de seus impactos sobre as políticas sociais
Estado do Capital
O Estado resultante da EC 95/16 será um Estado bem menor e descaradamente a serviço do grande capital financeirizado. Sem mediação alguma, as instituições e aparelhos se apresentarão apenas como instrumentos da perpetuação da dominação capitalista. Não é por acaso que, ao mesmo tempo em que o congelamento dos gastos públicos está sendo implantado, aprofunda-se a mercantilização da saúde, da educação e são propostas mudanças na previdência que irão ampliar a presença do setor privado nesse campo.
Ao longo dos vinte anos de vigência do congelamento, certamente pouco restará da presença do Estado nessas áreas. Se a essa possibilidade somarmos a tendência de incorporar no serviço público a lógica da administração das empresas privadas, nada restará daquilo que chamamos de coisa pública. Nem na forma, nem no conteúdo. Como disse Margareth Thatcher, “o objetivo é mudar o coração e a alma”. No lugar do interesse coletivo ou do povo, atendido mediante ações e políticas que permitem sua manutenção e reprodução – emprego, salário, rendas derivadas das políticas sociais e de outras políticas públicas -, teremos a defesa do interesse dos detentores da dívida pública, isto é, do capital portador de juros, e o fortalecimento de seu aparato jurídico e repressor para manter a ordem e a propriedade privada.
Os impactos já sentidos na saúde
Houve queda do nível de gasto do governo federal em 2017 depois de muita pressão dos movimentos comprometidos com o SUS, apesar de nesse ano, os 15% da Receita terem sido considerados como piso orçamentário.
a) As despesas totais efetivamente pagas com Ações e Serviços Públicos de Saúde-ASPS pelo Ministério (resultado da soma dos restos a quitar com os pagamentos dos empenhos de 2017) foram de R$ 107,622 bilhões, enquanto o piso para o ano era de R$ 109,088 bilhões. Os valores ficaram, portanto, abaixo do piso – aplicação mínima – federal em ASPS em 2017.
b) As transferências para os Estados, Distrito Federal e Municípios, que representam 2/3 das despesas do Ministério da Saúde, totalizaram R$ 67,9 bilhões em 2017, contra R$ 66,7 bilhões em 2016, o que representou um crescimento nominal de 1,83%, abaixo do crescimento anual do IPCA/IBGE de 2,95%, ou seja, houve uma queda real dessas transferências (FUNCIA, 2018).
Vale lembrar que no capitalismo contemporâneo o grande capital, seja industrial ou comercial, está intimamente imbricado com o capital portador de juros e, dentro dele, o capital fictício. Por isso, denominamos o grande capital de financeirizado.
O Estado resultante da EC 95/16 será um Estado bem menor e descaradamente a serviço do grande capital financeirizado. Sem mediação, suas instituições e aparelhos se apresentarão apenas como instrumentos da perpetuação da dominação capitalista
Democracia sem função
No plano político e mais imediato, o congelamento do gasto público tem como consequência destruir qualquer sombra que ainda possa existir da democracia burguesa e da possibilidade de o executivo, eleito em eleições gerais, ter liberdade, mesmo que relativa, para implantar o programa para o qual foi eleito.
Como é sabido, em um regime democrático burguês, o executivo é eleito pela maioria dos votos e, a partir daí, executa em teoria seu programa, o que é mediado pela representação das demais forças políticas no Congresso e pelas demandas dos setores sociais populares organizados. A concretização dessa síntese de diferentes interesses presentes na sociedade se expressa no orçamento do governo federal, pois à proposta inicial encaminhada pelo governo, somam-se emendas e supressões apresentadas pelos parlamentares. Tudo muda com a implantação do teto de gastos. É como se não houvesse importância saber quais serão o futuro presidente, deputados federais ou senadores, e qual a orientação programática que eles defendem.
A política é excluída da esfera fiscal e o presidente da República passa a ser mero executor dos interesses cristalizados na EC 95/16. Dessa forma, perde-se o último grau de liberdade que o executivo ainda detenha neste mundo globalizado, sob a dominância do capital portador de juros. Sem real capacidade de fazer política cambial frente aos movimentos dos capitais; sem real capacidade para fazer política monetária a não ser aquela ditada pela “comunidade financeira internacional”, agora, com a EC 95/16, perde-se a possibilidade de fazer política fiscal.
Em outras experiências internacionais, a definição de tetos de gastos passou por alguma mediação política – com horizontes mais curtos, possibilidades de revisão de metas, incorporação da dívida pública, etc. No Brasil, essa dinâmica de anulação da política fiscal aparece de forma crua. Ainda que permaneçam as pressões sobre o orçamento, os marcos da disputa são enquadrados segundo resultados estabelecidos previamente.