Estatuto é a base legal para proteção contra abuso sexual, exploração de trabalho, violência e também garante direitos a educação, saúde, cultura e lazer. Advogado Ariel de Castro Alves resume: “seria uma tragédia”
por Rodrigo Gomes, da RBA
“Acabar com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é expor as crianças e adolescentes ao abuso sexual, à exploração do trabalho infantil, sem garantias de acesso à educação, à saúde, à assistência social. Se hoje, com uma das mais avançadas legislações do mundo, nós ainda temos tantos problemas, imagine se a lei for ‘jogada na latrina.” O alerta é do advogado Ariel de Castro Alves, fundador da comissão da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Ele e outros especialistas no tema avaliam que a ideia do candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro (PSL) de revogar a legislação vai liberar todo tipo de abuso contra crianças e adolescentes.
“O ECA tem que ser rasgado e jogado na latrina. É um estímulo à vagabundagem e à malandragem infantil”, afirmou Bolsonaro em entrevista coletiva, na cidade de Araçatuba (SP), em 23 de agosto. O candidato acusa a legislação de servir à impunidade de adolescentes e é defensor da redução da maioridade penal para 16 anos.
“Isso seria uma tragédia. Todo sistema de medidas protetivas para crianças e adolescentes, com Conselhos Tutelares, Varas da Infância, delegacias especializadas, abrigos para crianças que sofrem abusos, assistência social. Tudo isso está ancorado no ECA”, disse Alves.
O estatuto é comumente associado apenas às medidas socioeducativas para responsabilização dos menores de 18 anos que cometam crimes – definidos como atos infracionais. No entanto, todas as garantias legais e de proteção da criança e do adolescente também estão definidas na norma.
“O ECA está constituído em uma premissa de proteção integral. Todas as normas de proteção, garantia de direitos e responsabilização estão definidas ali. Essa ideia é ‘jogar na latrina’ a infância. É um grave retrocesso, depois de tanta luta para mudar os processos de educação e cuidado com as crianças e adolescentes, que ainda está longe de ser o ideal”, avaliou o ex-diretor do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) de Interlagos (zona de sul paulistana) Djalma Costa.
O estatuto define a proteção da criança como política de Estado, possibilitando inclusive que a criança seja protegida de um membro da própria família, se for necessário. Dados do Ministério da Saúde, reunidos entre 2011 e 2017, revelam que mais de um terço dos casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes são praticados por uma pessoa da própria família e quase 70% deles ocorrem dentro da casa da vítima.
“Nesses casos, o ECA prevê que a Justiça pode determinar a saída do agressor da casa, seja ele padrasto, tio, primo. Também permite transferir o cuidado da criança ou adolescente para outro familiar ou a colocar em um abrigo. Isso para além das demais medidas penais.
Sem essa legislação é impossível esse tipo de atuação”, ressalta Alves. Uma revogação do estatuto também liberaria o trabalho de crianças e adolescentes, hoje proibido para menores de 16 anos, exceto na condição de aprendizes a partir dos 14 anos.
Para Costa, uma revogação do estatuto é um “convite à agressão e ao abuso” contra crianças e adolescentes. “Voltaremos à ideia de que eles são propriedade de alguém e não pessoas, não sujeitos com direitos, interesses e sonhos”, afirmou.
O defensor destacou que sem o ECA, todo tipo de política pública será abandonada, tornando crianças e adolescentes “cidadãos de terceira classe, lembrados apenas quando estão incomodando alguém, como era antes do estatuto”.
Itamar Batista Gonçalves, gerente de Advocacy da ONG Childhood Brasil, que atua no enfrentamento à violência sexual de crianças e adolescentes, ressaltou que esse tipo de ação só começou a ter espaço no Brasil após a implementação do ECA. “O abuso sexual contra crianças e adolescentes era uma questão ‘naturalizada’ pelos costumes. Apenas com a criação do estatuto é que vamos ter uma estrutura legal e instituições para fazer esse trabalho, tanto na prevenção quanto no enfrentamento”, afirmou ele, avaliando que não seria tão simples revogar essa legislação.
Gonçalves lembrou ainda que o ECA não foi criado pelo desejo de um grupo político ou partido, mas por uma grande mobilização social. “Esta articulação respondia a um processo que vinha sendo realizado no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) para reconhecimento e defesa dos direitos de crianças e adolescentes.
O estatuto incorporou essas discussões e se tornou uma referência internacional em legislação de proteção, garantias e responsabilização de crianças e adolescentes”, relatou.
Para os especialistas, o estatuto é a ferramenta que temos para pressionar o Estado brasileiro em todos os sentidos na garantia de direitos das crianças e adolescentes, como acesso à educação, saúde, cultura, medidas de proteção e de responsabilização.
Também na inclusão das crianças que têm algum tipo de deficiência física ou intelectual. “Sem isso voltaremos ao tempo da caridade, desobrigando o Estado de zelar por elas”, explicou Alves, que considera que uma revogação dessa legislação seria inconstitucional, já que o ECA regulamenta o artigo 227 da Constituição.
O ex-diretor do Cedeca lembrou que outras normas que afetam a vida de crianças e adolescentes também estão sendo alvo de alterações que reduzem a proteção. “O Congresso tem discussão sobre a redução da idade mínima para o trabalho, bem como o debate sobre a redução da maioridade penal. Em 28 anos, não conseguimos instituir plenamente o ECA e já tem quem queira destruí-lo. Nós vamos lutar contra isso, nas ruas e na Justiça”, afirmou Costa.