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O IPF-DH publica a carta de Paulo Fonteles a sua mãe, para partilharmos a necessidade de não se deixar a memória das lutas passadas perder-se nas urgências da resistência que se impõe. Sair da leitura rasa da vida é um desafio que o tempero da memória ajuda a desvelar.

 

Por Paulo Fonteles Filho.

 

Ontem reencontrei um ex-soldado, o Elias, que esteve no combate à guerrilha do Araguaia e choramos juntos. Ele, estudante de Ciências Sociais com mais de 60 anos, me deixou tonto com os relatos sobre a forca.

Mãe, lembras do Julius Fucik, destacado dirigente comunista tcheco que nos deu a precisão do enredo para à barbárie das hordas nazistas? Pois é.

Ele fez lembrar-me de como aquele jornalista, editor de um jornal e cinco revistas clandestinas, pode transpor seus relatos para além dos muros da Gestapo e dar-nos um comovente relato sobre o que o homem pode fazer a outro homem, se o primeiro tem inspiração em facínoras como Hitler ou Bolsonaro, portanto toda a vigilância é pouco.

Estou bem cansado pelos dias com meus companheiros, são tantos. Por aqui, muitos chuviscos, chuvaradas e um filme por fazer ao lado do Ismael Machado e Michelle Maia sobre os muitos dramas desta Amazônia violada pela sanha do capital, com seus soldadinhos de chumbo: estreludos generais com sangue nas mãos.

Não te preocupes, o Sezostrys sempre está comigo, ele é um irmão preto que a vida me deu, incansável nessa luta. O Sinvaldo e meu pai também estão aqui, me protegendo, guardados pelas estrelas molhadas da imensa madrugada. Estamos unidos em pensamento e ação.

Chove dentro do peito, são trovões, raios, ventanias e escuto Piazzola. A próxima música será aquela que gostas muito, “Adios Nonino”. Minha preferida é “Novitango”, onde ancoro as esperanças do mundo.

Mãe, sou feliz por teres botado o compositor argentino dentro de meu coração, assim a vida fica menos dura nessas horas onde o silencio é rompido pelo bandoneón, dentro do quarto simples deste hotel de Marabá.

Sinto que a música abre a porta, sai pelo corredor, desce as escadas e ganha a rua só para namorar o Tocantins que, suave, corre com suas águas para a manhã que logo chega, como o Socialismo, sonho humano de uma vida sem lobos nem escravos.

Mãe, o Elias, ex-soldado, levou comida ao Eduardo, guerrilheiro moribundo, além de afrouxar-lhe as trancas infames da tortura. O gesto salvou-lhes as vidas para sempre, do combatente estiolado e do jovem soldado que, se pego, iria direto pro “pau-do-capitão”, jargão usado no emprego da tortura nos recrutas, que é a mesma coisa do “pau-de-arara”.

Os incautos haverão de dizer que todos foram iguais e não foram. Usar fardas não transforma ninguém em Curió ou Madruga, ambos são produtos do fascismo, da violência e das botas da Casa Grande que, enfim, mais uma vez deram um duro golpe na democracia e nos direitos do povo, como em 1964.

Nós, os que sobreviveram, os que tiveram a carne violada, os que trincaram os dentes e os ossos sentindo o choque elétrico e o medo, os que enfrentaram com a alma e pelas armas o verdugo, não podemos silenciar, não é? Assim aprendi no ventre contigo.

Mãe, o Elias está me esperando com o café passado às seis horas da manhã, antes de seguir pro trabalho. Vou até a sua casa conversar, olhar quintal, comer goiaba e a manhã que chega em timbres de liberdade.

Avante!

Do filho que te ama, Paulo.