por Eugênia Augusta Gonzaga
O dia 30 de agosto foi declarado pela ONU como o Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados. Trata-se de prática adotada por governos violentos, segundo a qual suas vitimas não são sequer reconhecidas como mortas e nem o corpo é entregue à família para sepultamento.
Durante a ditadura militar houve centenas dessas vítimas no Brasil, mas a prática não parou. E ela atinge especialmente pessoas pobres e habitantes de comunidades vulneráveis, graças às condições absolutamente indignas com que são sepultadas. É o que constatou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, instituída em 1995.
Essa Comissão funciona junto à Secretaria Especial de Direitos Humanos, hoje Secretaria Nacional de Cidadania, e tem por finalidade proceder à busca de corpos de militantes políticos mortos no período da ditadura militar (1964-1985).
Nessa tarefa, além de ter contribuído para a retomada das análises das ossadas de Perus e para as buscas na região do Araguaia, a Comissão tem se dedicado a pesquisas em cemitérios públicos dos principais municípios onde essas vítimas podem ter sido enterradas clandestinamente: São Paulo, Rio de Janeiro, Petrópolis e Marabá. O cenário encontrado, porém, é desolador.
Os agentes da ditadura esconderam os corpos de suas vítimas em cemitérios públicos, enterrando-os como indigentes (aqueles que não podem pagar por sepulturas). E acertaram na sua metodologia.
A política existente no país para o tratamento dos restos mortais de pessoas pobres é das mais indignas e sem qualquer tipo de regulação nacional. Cada município decide como quiser. E a situação mais comum é a de que corpos de pessoas que não podem pagar uma sepultura são exumados após 03 anos e colocados em ossários gerais de rastreabilidade impossível. Outros são até mesmo incinerados sem autorização da família, ou colocados em fossas e amassados com rolo compressor, ou simplesmente colocados em sacos de lixo e deixados a céu aberto, como foi constatado em um dos cemitérios visitados.
Por outro lado, pessoas que podem pagar por uma sepultura (ou carneira) perpétua, mesmo após muitos anos sem nenhum pagamento da manutenção do local, mesmo que não haja mais familiares vivos conservando a sepultura, dificilmente as prefeituras procedem à retomada do espaço para reaproveitamento. O resultado são milhares de sepulturas “particulares” em cemitérios públicos, guardando restos mortais há décadas e ocupando espaço sem nenhuma justificativa. E, de outro lado, as sepulturas “alugadas”, de imensa rotatividade e sem qualquer cautela para que os restos mortais não se percam, após os 03 (três) anos.
A conservação dos restos mortais, dependendo unicamente do dinheiro pago, é um atentado aos princípios da igualdade e da dignidade humana. É nesse quadro que os desaparecimentos de brasileiros e brasileiras continuam ocorrendo, e esse desaparecimento é político.
É político porque é uma opção feita pelo País de não tratar seus cidadãos e cidadãs com igualdade no seu direito inalienável a uma dignidade mínima, na vida e na morte. É político porque essa opção continua permitindo a impunidade de crimes diversos, mas especialmente daqueles praticados pelo Estado, cujos agentes conhecem e se prevalecem dessa sistemática.
Pedro Bala, um dos personagens de Jorge Amado em “Capitães da Areia”, diz ao Padre que a vida é muito injusta, pois uns são ricos e outros pobres. O Padre tenta confortá-lo dizendo que após a morte serão todos iguais.
Nesse tema, porém, não há igualdade nem após a morte. Se nada for feito para resolver esse descaso monumental, continuaremos tendo milhões de desaparecidos políticos no País, todos os anos.
Eugênia Augusta Gonzaga, procuradora Regional da República, presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Politicos