Por Paulo Fonteles Filho e Angelina Anjos.
O Relatório da Anistia Internacional 2016/2017, intitulado “O Estado dos Direitos Humanos no Mundo”, lançado no último 22 de fevereiro, informa que o golpe de Temer foi o principal responsável pelas violações de direitos humanos no Brasil.
O informe anual do movimento global – criado em 1961 pelo advogado britânico Peter Benenson com vistas à defesa dos direitos humanos em escala mundial e que reúne mais de 7 milhões de pessoas pelo mundo, entre membros e apoiadores – apresentou um aterrador quadro internacional denunciando que “a ideia de dignidade e igualdade humanas, a própria noção da humanidade como uma família, sob ataque vigoroso e implacável de narrativas poderosas de culpa, medo e bodes expiatórios, propagadas por aqueles que buscam tomar ou se manter no poder a quase qualquer preço”, que confirma a tendência de crescimento de forças fascistas e do discurso marcadamente xenófobo, misógino, racista e de direita mundo afora.
Trump e a crise sistêmica do capitalismo
Situa que no espectro político internacional a eleição de Donald Trump à Casa Branca foi “talvez o mais vistoso de muitos acontecimentos desastrosos” de 2016 e que a sua retórica venenosa na campanha eleitoral nos EUA “exemplifica uma tendência global em direção a uma política raivosa e fragmentada”. Expõe, ainda, que seu antecessor, Barack Obama, deixou “um legado que inclui muitos fracassos dolorosos na questão dos direitos humanos, entre eles a ampliação da campanha secreta da CIA de ataques com drones e o desenvolvimento de uma máquina de vigilância em massa gigantesca, como Edward Snowden denunciou”.
O fato é que iniciamos 2017 num mundo marcado por instabilidades, agitação e incertezas quanto ao futuro, próprias da crise sistêmica do capitalismo em sua fase neoliberal, de potente maximização do mercado em detrimento à vida humana. Não à toa a afirmação de que “a certeza dos valores articulados na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 corre o risco de ser dissolvida”, indicando a erosão da moral civilizatória através da retórica do ódio, da divisão e da desumanização que “liberou os instintos mais sombrios da natureza humana” ao jogar a responsabilidade por problemas econômicos e sociais para os mais pobres, minorias étnicas e religiosas, e acusa que “os que detêm o poder deram passe livre para a discriminação e crimes de ódio, em especial na Europa e EUA”.
No Brasil: PEC 241/55, repressão a protestos, a polícia que mata.
O recorte dado pela Anistia Internacional à realidade do país indica que o impeachment de Dilma Roussef – após longo processo no Congresso – e a ascensão de Michel Temer representou sérios revezes nos direitos humanos no Brasil com a aprovação da PEC 241/55 “que limita os gastos do governo durante os próximos vinte anos, e que pode ter efeitos negativos nos investimentos em educação, saúde e outras áreas”.
Cita, nesse aspecto, a posição de crítica do relator especial da ONU para a extrema pobreza e direitos humanos, Philip Alston, que acusou o governo golpista de “radical” e “sem compaixão” pelo fato de que tal medida terá impacto severo sobre os mais vulneráveis, além de constituir uma ruptura das obrigações internacionais do Brasil.
Para àquele organismo a polícia brasileira “continuou a fazer uso desnecessário e excessivo da força, em especial no contexto dos protestos. Jovens negros, principalmente os que moram em favelas e periferias, foram desproporcionalmente afetados pela violência por parte de policiais”.
O fato é que 2016 foi marcado por crescentes ondas de protestos, no geral pacíficos, contra o golpe democrático de Temer, a reforma educacional, a violência contra as mulheres, os impactos negativos dos Jogos Olímpicos e a redução de gastos públicos com saúde e educação. A resposta policial diante das manifestações, demasiadamente violenta com uso desnecessário de força, revelou que o aparato de segurança pública do país tomou lado diante da crise política em curso.
Mesmo diante das intimidações – e pressões da grande mídia – mereceu destaque a ocupação de mais de mil escolas públicas para questionar a reforma da educação e os cortes de investimentos propostos pelo governo.
No corolário das preocupações a situação de fragilidade de defensoras e defensores de direitos humanos, em especial os que defendem o direito a terra e ao meio ambiente que “enfrentaram cada vez mais ameaças e ataques”, além de registrar a prática comum de violência contra mulheres e crianças e que a discriminação contra refugiados se intensificaram no país dos trópicos.
Caos na Segurança Pública
O informe expõe a guerra civil do cotidiano brasileiro, através de elevadas taxas de homicídio e violência armada. Indica que, em 2015, quase sessenta mil pessoas foram mortas no país e que as autoridades falharam na abordagem do tema.
Aliás, muitos agentes públicos estão envolvidos em práticas criminosas e formação de milícias ou grupos de extermínio que fez com que a relatora especial da ONU para minorias, Rita Izsák, apresentasse ao Conselho de Direitos Humanos “recomendações de que tanto a polícia militar quanto a classificação automática dos homicídios cometidos por policiais como ‘resistência seguida de morte’ – que presume que o policial agiu em legítima defesa e não leva a nenhuma investigação – sejam abolidas”.
Jogos Olímpicos 2016
O sonho olímpico tupiniquim fora marcado pela incapacidade governamental de defender os direitos humanos e, ao contrário, foi seu principal violador.
A mobilização de milhares de militares e agentes de segurança pública ocorreu no mesmo momento em que a polícia carioca aumentou em 103% o número de pessoas mortas pela instituição, em relação ao mesmo período do ano de 2015, isso sem contar a ocupação de vastas áreas faveladas, numa verdadeira ocupação militar, com direito a horas de tiroteios, buscas domiciliares ilegais e tortura. Números oficiais indicam que as forças de segurança mataram 12 pessoas e que se envolveram em mais de duzentos tiroteios durante os jogos, sempre nas periferias, escondida pela grande mídia, mais preocupada em abafar os apupos sofridos pelo usurpador Temer.
A “Lei Geral das Olímpiadas” – desnecessária concessão de Dilma – e a repressão contra manifestantes #ForaTemer dentro dos locais de competição também mereceram registro, além da brutal violência policial contra manifestações e a criminalização de militantes de movimentos sociais, tipificando-os de crime de perturbação da ordem pública.
Execuções Extrajudiciais
Segundo o informe as execuções cometidas por agentes de segurança pública continuaram numerosos e, em alguns estados, aumentaram. Entre janeiro e novembro de 2016 mais de 800 pessoas foram assassinadas pela polícia carioca, principalmente em favelas.
O fato é que a maioria dos crimes cometidos por policiais continuam impunes, como são os casos ocorridos na favela do Acari e na Nova Brasília, no Rio de Janeiro, na década de 1990. No caso da favela de Nova Brasília, onde 26 pessoas foram assassinadas entre 1995/1996, mereceu acompanhamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Apesar das pressões externas, tais homicídios não tinham sido investigados e ninguém foi preso.
O Relatório indica, ainda, casos na Bahia e em São Paulo.
Desaparecimentos Forçados
Em fevereiro de 2016 doze policiais militares foram condenados e sentenciados por crimes de tortura seguidos de morte, fraude processual e ocultação de cadáver no caso de Amarildo de Souza, no Rio de Janeiro.
Na Bahia, em abril, investigações policiais indicaram 23 policiais militares como suspeitos no desaparecimento forçado de Davi Fiuza, de 16 anos, em Salvador. Entretanto, o caso nem chegou ao Ministério Público e ninguém havia sido julgado até dezembro do ano passado.
Condições Prisionais
Os eventos carniceiros do início de 2017, nos presídios brasileiros, reforçam a visão de uma tragédia anunciada na medida em que as prisões do país, extremamente superlotadas e perpetradora de torturas e maus-tratos, é geradora contumaz de graves violações de direitos.
Eventos violentíssimos já haviam ocorrido em 2016, como são os casos de Roraima e Rondônia, que se destacaram na seara de pólvora do sistema prisional do país. A situação carcerária do Brasil é tão grave que o Relator Especial da ONU denunciou as péssimas condições de vida e a ocorrência do supliciamento de presos por policiais e carcereiros.
Destaca, ainda, a anulação do julgamento e das sentenças de 74 policiais pelo massacre no presídio de Carandiru em 1992, momento em que 111 homens foram mortos pela força policial.
Liberdade de Manifestação
A polícia usou força abusiva e desnecessária em vários estados para dispersar manifestações contra o novo governo e a proposta de emenda constitucional – PEC 241/55 – que restringe os gastos públicos em saúde e educação. Em São Paulo, uma estudante perdeu a visão do olho esquerdo depois que uma bomba de efeito moral explodiu perto dela.
Em janeiro, Rafael Braga Vieira, que tinha sido detido depois de um protesto no Rio de Janeiro em 2013 foi preso novamente sob acusação forjada de tráfico de drogas.
Em agosto, um juiz estadual não reconheceu a responsabilidade do estado pela perda de um dos olhos de Sergio Silva, depois dele ter sido atingido por um projétil atirado pela polícia durante um protesto em São Paulo. Tal decisão, jocosa, considerou que, por estar num protesto, Sergio tinha implicitamente aceitado o risco de sofrer ferimentos causados pelo aparato policial.
Defensores e Defensoras de Direitos Humanos
Casos de ameaças, ataques e assassinatos envolvendo defensores dos direitos humanos raramente eram investigados e permaneciam praticamente impunes.
Apesar da existência de uma política nacional e um programa de proteção aos defensores de direitos humanos, deficiências na implantação do programa e a falta de recursos fizeram com que essas pessoas continuassem vítimas de ameaças e homicídios. Em junho houve a suspensão de diversos acordos entre o governo federal e os governos dos estados para implantar o programa, além dos cortes de gastos, fator que diminuiu sua eficácia.
Abril marcou o vigésimo aniversário do massacre de Eldorado dos Carajás, quando 19 trabalhadores sem-terra foram assassinados e 69 ficaram feridos durante uma operação brutal envolvendo mais de 150 policiais no sudeste do Pará. Apenas dois comandantes da operação foram condenados por homicídio e agressão.
Nenhum policial ou outra autoridade foi responsabilizado. Desde o massacre, mais de 271 trabalhadores e lideranças rurais foram assassinados só no Pará.
Direitos dos Povos Indígenas
Os processos de demarcação e titulação dos territórios de povos indígenas continuaram a progredir muito lentamente, apesar do prazo para isso ter terminado há 23 anos. Uma emenda constitucional, a PEC 215, que permite aos legisladores bloquear as demarcações — vetando, assim, os direitos dos povos indígenas previstos pela Constituição e pelo direito internacional — está em discussão no Congresso.
Houve tentativas de bloquear a demarcação de terras, em alguns casos, por grandes fazendeiros.
A sobrevivência da comunidade Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, correu sérios riscos. Em julho, a comunidade Apika’y foi expulsa de suas terras ancestrais.
Embora a comunidade tenha sido notificada do despejo, não foi consultada e nem recebeu opções para realocação. As famílias de Apika’y foram deixadas na beira de uma estrada, com acesso restrito a água e comida.
Em outubro, um inquérito conduzido pelo Ministério Público Federal concluiu que o assassinato do índio Terena Oziel Gabriel foi causado por uma bala da Polícia Federal numa operação de 2013 na fazenda Buriti, no Mato Grosso do Sul.
Durante uma visita em março, o Relator Especial da ONU sobre o direito dos povos indígenas denunciou a incapacidade de o Brasil demarcar as terras indígenas e o enfraquecimento de instituições estatais responsáveis por proteger os direitos desses povos.
Pessoas Refugiadas, Solicitantes de Refúgio e Migrantes
Havia aproximadamente 1,2 milhão de solicitantes de refúgio, refugiados e migrantes morando no país até outubro. O governo não dedicou o empenho e os recursos necessários para atender as necessidades dos solicitantes de refúgio, como processar os pedidos. Na média, levou pelo menos dois anos para processar um pedido de refúgio — deixando os requerentes no limbo jurídico durante esse período.
Em dezembro, a Câmara dos Deputados aprovou uma nova lei de migração que salvaguarda os direitos de solicitantes de refúgio, migrantes e apátridas; a lei estava sendo apreciada pelo Senado no final do ano. Solicitantes de refúgio e migrantes relataram que a discriminação era rotina quando tentavam ter acesso a serviços públicos, como saúde e educação.
Durante o ano, no estado de Roraima, 455 venezuelanos – incluindo crianças – foram deportados, muitos sem acesso ao devido processo legal.
Violência Contra Mulheres e Meninas
Em maio, o governo federal interino extinguiu o Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos e o reduziu a uma secretaria, parte do Ministério da Justiça, o que causou uma redução significativa dos recursos e programas dedicados a salvaguardar os direitos das mulheres e meninas.
Uma série de estudos durante o ano mostrou que a violência letal contra mulheres aumentou 24% durante a década anterior e confirmou que o Brasil é um dos piores países da América Latina para se nascer menina, em especial devido aos níveis extremamente altos de violência de gênero e gravidez na adolescência, além das baixas taxas de conclusão da educação secundária.
Os estupros coletivos de uma menina em 21 de maio e de uma mulher em 17 de outubro no estado do Rio de Janeiro foram notícia no país todo, confirmando a incapacidade do estado para respeitar, proteger e cumprir os direitos humanos de mulheres e crianças. De janeiro a novembro, havia 4.298 casos de estupro reportados no estado do Rio de Janeiro, 1.389 deles na capital.
O ano também marcou uma década desde que a Lei Maria da Penha, contra violência doméstica, entrou em vigor.
O governo falhou em implementar a lei com rigor, e a violência doméstica e a impunidade continuam amplamente difundidas.
Direitos das Crianças
Em agosto, um adolescente morreu e outros seis ficaram gravemente feridos no incêndio de uma
unidade do sistema socioeducativo na cidade do Rio de Janeiro. Em setembro, um adolescente que estava hospitalizado desde o incidente morreu em decorrência dos ferimentos.
O número de internos nas unidades do sistema socioeducativo no Rio de Janeiro aumentou 48% durante o ano, agravando uma situação, que já era crítica, de superlotação, péssimas condições de vida, tortura e outros maus-tratos.
Uma proposta de emenda constitucional para reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos ainda estava sendo apreciada pelo Senado, apesar de ter sido aprovada pela Câmara dos Deputados em 2015.
Conheça o Relatório da Anistia Internacional 2016/2017: https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2017/02/AIR2017_ONLINE-v.2-2.pdf
*Paulo Fonteles Filho é presidente do Instituto Paulo Fonteles de Direitos Humanos e Angelina Anjos é Assistente Social da Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos do Pará.
Arte de Angelina Anjos.