Por André Luiz Machado*
O golpe de 2016 nos tem conduzido ao que o magistrado Rubens Casara chama de Estado pós-democrático (cf. CASARA, Rubens. Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2017) que seria um Estado de flexibilização do exercício do poder no qual a democracia surge nos discursos dos atores políticos como mero simulacro.
É importante lembrar que o golpe ainda deverá contar com graves desdobramentos sociais como a reforma previdenciária cujo projeto, nos moldes em que se encontra, praticamente aniquila o acesso a uma aposentadoria minimamente digna.
Há também perspectiva preocupante de que, a pretexto de uma reforma política com vistas a implantar outro sistema de governo (parlamentarismo), sequer tenhamos eleições em 2018.
Outro aspecto do golpe tem relação com a partidarização de parcela do judiciário que, em nome do combate à corrupção a todo custo, poderá inviabilizar uma candidatura mais popular posta até o presente momento.
Por enquanto, além de invalidar cinqüenta e quatro milhões de votos, os golpistas lograram impor ao povo duas grandes derrotas: a promulgação da Emenda Constitucional 95, que elimina investimentos em políticas públicas compensatórias pelos próximos vinte anos, e a aprovação da Lei 13.467/17, denominada Lei da Reforma Trabalhista.
A Lei 13.467/17 entrará em vigor no próximo dia onze de novembro, promovendo a completa destruição dos fundamentos sobre os quais o direito do trabalho se assentou durante sete décadas, em especial o princípio protetivo, de acordo com o qual o ordenamento jurídico trabalhista deve tutelar o direito do trabalhador porque é a parte mais fraca (hipossuficiente) na relação contratual com o patrão.
As cantilenas surradas e inverificáveis do neoliberalismo sobre a necessidade de modernização das relações de trabalho e de criação de empregos são usadas como justificativas para promover o que, na verdade, consiste num retorno aos padrões do mundo do trabalho de Século XIX.
Como se sabe, o receituário neoliberal só serve mesmo para impor austeridade ao trabalhador e promover o acúmulo de riquezas de uma parcela ínfima da sociedade.
A reforma trabalhista modifica, para pior, o direito individual do trabalho, o direito coletivo do trabalho e o processo do trabalho.
No campo do direito individual a Lei 13.467/17 pretende, como num passe de mágica, eliminar o conceito caríssimo ao Direito do Trabalho que é hipossuficiência do trabalhador, fingindo que patrão e empregado se encontram em condições de igualdade contratual.
Reginaldo Melhado, juiz do trabalho no Paraná, quanto a este aspecto, refere-se, de forma jocosa, ao “conto do vigário da autonomia da vontade na reforma trabalhista” (cf. MELHADO, Reginaldo. in Reforma trabalhista: visão, compreensão e crítica. São Paulo: LTR, 2017).
O magistrado paranaense quer se referir ao fato de que tal autonomia da vontade do trabalhador não existe na prática e nem passará a existir a partir do dia onze de novembro porque ainda prevalece, no sistema de relações de emprego, o poder diretivo do empregador, uma vez que ele detém os meios e a forma de produção.
Salvo nas situações de estabilidade provisória (gestante, integrante de direção sindical ou da Comissão Interna de Prevenção de acidente), o empregado não tem nenhuma garantia de emprego, daí porque falar de autonomia da sua vontade soa uma piada de muito mau gosto.
Essa guinada radical pode ser extraída de vários artigos da Lei 13.467/17 que facultam ao empregado e ao empregador celebrarem condições de trabalho mediante acordo individual, como se o trabalhador reunisse o mesmo poder de negociação do patrão. Aí reside o conto do vigário de que fala Melhado.
No direito coletivo, o retrocesso abrange a atividade sindical porque cria outros mecanismos de representação dos empregados como é o caso da comissão de empregados que poderá ser escolhida em empresas com mais de duzentos empregados (art. 510-A da CLT). O artigo 510-C da CLT diz, com todas as letras, que o sindicato não poderá exercer sua influência nessa instância de representação.
O prejuízo à atividade de representação sindical também se faz presente num dos paradoxos criado pela Lei. É que o art. 611-A da CLT, alterado para permitir a prevalência do negociado em detrimento do legislado, que, em tese, teria a finalidade de fortalecer as negociações coletivas e, por via de conseqüência, o movimento sindical, perde a sua eficácia ante a faculdade conferida à empresa de realizar ajustes individuais sobre diversos temas da relação de emprego, como, por exemplo, as formas de compensação de horas extraordinárias (art. 59, § 5º da CLT). Tal significa dizer que o empregador preferirá ajustar individualmente com o empregado as condições de trabalho no lugar de tratá-las em negociação coletiva.
No campo do processo trabalhista, a Lei cuidou de erigir obstáculos quase intransponíveis para que o trabalhador tenha acesso à jurisdição, como, por exemplo, impor-lhe a obrigação de pagar honorários periciais mesmo que seja beneficiário da gratuidade de justiça (art. 790-B da CLT).
Vários outros retrocessos podem ser observados na Lei 13.467/17, a saber: trabalho intermitente (art. 452-A), trabalho da mulher grávida em ambiente insalubre (art. 394-A, III), ampliação de jornada de trabalho com redução de intervalos para descanso (art. 611-A, III) , exclusão da interferência sindical nas homologações de rescisão contratual (revogação do art. 473, § 3º) e nas despedidas em massa (art. 477-A), etc. Em suma, a Lei formaliza a precarização nas relações de trabalho.
Por fim, mas não menos importante, verificamos outra barbaridade na Lei da Reforma Trabalhista quando trata da atuação dos magistrados da Justiça do Trabalho, na medida em que alguns artigos tentam impor algo realmente espantoso: a restrição a que os juízes utilizem princípios gerais de hermenêutica para interpretar a Lei.
O legislador quis – de uma forma sutil – impor ao magistrado como interpretar os fatos que emergem das violações contratuais. Exemplo dessa grotesca normatização são os artigos que tentam impedir que o juiz declare a nulidade de uma cláusula de acordo ou convenção coletiva (art. 8º, § 3º), mesmo na hipótese em que se verifica, por exemplo, afronta aos princípios constitucionais. Aqui a Lei retroagiu ao período das monarquias do Século XVIII sob as quais o juiz deveria ser apenas um prolongamento da vontade do rei e da nobreza. Um verdadeiro escândalo.
Em que pesem essas restrições, a magistratura, que ainda se mantém engajada na concretização dos princípios da dignidade humana, saberá afastar a aplicação de normas que afrontem os direitos humanos do trabalhador, por intermédio dos controles de convencionalidade e constitucionalidade.
Finalizando, uma nota de pesar deve ser feita. Trata-se da passividade com que os principais atores do mundo do trabalho permitiram que essa reforma fosse aprovada no parlamento. A ausência de resistência pode abrir o flanco para que a onda de fascistização da sociedade ganhe fôlego e produza mais retrocessos sociais.
FONTE: http://www.vermelho.org.br/noticia/304195-1
* André Luiz Machado é juiz do Trabalho