Leandro Scalabrin, da Renap, analisa como governos conseguem intimidar protestos através de aparatos judiciais.
por Rute Pina
As manifestações são um direito garantido pela Constituição Federal e por tratados internacionais assinados pelo Brasil. O advogado Leandro Scalabrin, da Rede Nacional de Advogados Populares (Renap), no entanto, pontua que o Estado cria mecanismos “com aparência de legalidade” para cercear este direito.
O caso mais recente é o pedido do prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Jr. (PSDB) de enviar as Forças Nacionais para garantir a segurança dos protestos em solidariedade ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no dia 24 de janeiro.
A solicitação do tucano não foi acolhida, mas o governo estadual avalia, entre outras medidas, um bloqueio no perímetro do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) na data do julgamento de Lula.
Em entrevista concedida ao Brasil de Fato, Scalabrin explica como os governos conseguem intimidar manifestações. Confira abaixo:
Brasil de Fato: Qual sua avaliação sobre o pedido do prefeito de Porto Alegre?
Leandro Scalabrin: Primeiro, nem caberia ao prefeito pedir esse tipo de intervenção por ameaça à ordem pública porque a Segurança Pública compete ao governador do estado, que já estava tomando as providências cabíveis.
Não há qualquer ameaça que, de fato, justificasse a intervenção do prefeito. Ou seja, o pedido dele é totalmente motivado por questões políticas, ideológicas.
Ele [O tucano Nelson Merchazan Jr.] é ligado ao Movimento Brasil Livre (MBL) e participou do congresso do movimento há poucos dias em São Paulo. A manifestação dele é totalmente ideológica, uma lógica persecutória de implantação de um estado de medidas de exceção à democracia.
Que mecanismos você observa que os governos utilizam para asfixiar manifestações?
A nossa Constituição garante o direito à livre manifestação, de reunião pacífica. Os tratados internacionais e de direitos humanos que o Brasil ratificou também garantem a livre manifestação, como o Pacto de San José da Costa Rica. Mas artifícios com aparência de legalidade têm sido criados para justificar o cerceamento deste direito.
Em São Paulo, em 2007, uma prefeitura decretou estado de calamidade pública porque os sem-teto fariam um acampamento na cidade. O Ministério Público (MP) utilizou esse pretexto para obter uma decisão judicial para impedir a manifestação dos sem-teto — foi um dos primeiros precedentes deste tipo.
Posteriormente, utilizaram isso contra os sem-terra no Rio Grande do Sul. Havia três grandes marchas com destino a uma determinada fazenda para a qual se exigia reforma agrária. A Polícia Militar emitiu um documento sigiloso, direcionado ao MP, alegando uma situação de emergência que colocava em risco a ordem pública.
Com isso, o Ministério Público ingressou com uma ação judicial para impedir que as marchas do sem-terra entrassem na comarca onde se localizava a fazenda. Isso também em 2007.
Também ali se utilizou de uma ação judicial proposta pelo MP para criar uma zona de restrição de direitos: em um raio de dois quilômetros ao redor destes grandes latifúndios estava proibido qualquer tipo de manifestação dos sem-terra.
Comparamos e descobrimos que durante as manifestações que aconteceram na Alemanha contra as decisões do G8, em 2006, a Polícia também tomou esse mesmo tipo de medida. Através de uma cooperação estreita entre a Polícia Militar, o Poder Executivo e os órgãos de Justiça, criaram-se zonas de restrições ao direito de livres manifestações, caracterizando então uma espécie de ruptura institucional, medidas de exceção toleradas pela democracia. Agora, em 2017, isso se repete no Rio Grande do Sul.
Nesses contextos de grandes manifestações é comum ver práticas como revista de ônibus e manifestantes, perímetros de bloqueio (como no caso do julgamento de Lula). São práticas legais que o governo pode tomar visando à ordem pública?
O governo deveria ser o mais liberal possível, permitindo e favorecendo a organização, a participação das pessoas, o deslocamento em ônibus sem restrições além das usuais.
Em uma democracia plena e convicta, jamais poderia se restringir, de qualquer forma, o direito à manifestação diante da suposição de que possa acontecer o excessos. Sempre deve se privilegiar o direito à livre manifestação e, se ocorrerem excessos, eles devem ser coibidos e os manifestantes que praticarem que devem ser penalizados.
Você citou tratados internacionais que falam deste tema. E sabemos que essas violações não ocorrem só no Brasil: recentemente, na Argentina, os ônibus que iam em um protestos contra a Organização Mundial do Comércio (OMC) foram revistados. O que existe de jurisprudência internacional sobre isso?
O paradigma do Conselho de Direitos Humanos da ONU [Organização das Nações Unidas] é que não haja restrição ao direito de manifestação diante da suposição ou da hipótese que nessas manifestações possam ocorrer abusos ou ato ilícitos.
Sobre a questão dos ônibus, infelizmente foi aprovada, há pouco tempo, uma legislação, sancionada ainda no governo Dilma [Rousseff], mudando o Código de Trânsito e prevendo multas pesadas para punir os veículos que participem de protestos.
E, do ponto de vista dos movimentos? Que aparatos eles podem utilizar para garantir o direito à manifestação?
Os movimentos populares, diante deste contexto de repressão do seu direito à manifestação, têm organizado táticas de proteção contra eventuais agressões da polícia e têm mantido a decisão firme de se realizar as manifestações no dia 24 de janeiro, de forma afirmar a soberania popular de decidir sobre a realização de manifestação.
E também está se organizando, pela Rede Nacional de Advogados Populares e outros coletivos de advogados, um plantão jurídico para acompanhar manifestantes que eventualmente sofrerem cerceamento da sua liberdade de ir e vir e do seu direito à manifestação.
Edição: Vanessa Martina Silva