Além de crimes contra a humanidade serem imprescritíveis, nesse caso o Brasil assumiu perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos o compromisso de levar os criminosos a julgamento, lembra o MPF

O Ministério Público Federal (MPF) encaminhou nessa segunda-feira (26) à Justiça Federal em Marabá, no Pará, manifestação em que defende a imprescritibilidade dos crimes contra José Pereira Ferreira. Em 1989, aos 17 anos, ele foi submetido a condições análogas às de escravo, tentou fugir e foi baleado na cabeça, só sobrevivendo porque fingiu-se de morto ao lado do corpo de outra vítima dos criminosos.

Além de os crimes terem sido caracterizados como crimes contra a humanidade, que são imprescritíveis tanto na legislação nacional quanto na internacional, no caso José Pereira o Brasil comprometeu-se perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a julgá-los, lembra o MPF.

“Esta é uma oportunidade para o Estado Brasileiro, através deste juízo, não se mostrar indiferente aos compromissos internacionais assumidos em matéria de proteção e garantia dos Direitos Humanos, efetivando o princípio da prevalência desses direitos nas relações internacionais e garantindo o combate à impunidade desses delitos”, ressaltam na manifestação as procuradoras da República Marília Melo Figueirêdo, Lígia Cireno Teobaldo e Thais Stefano Malvezzi.

O compromisso com a CIDH foi assumido pelo país em 2003, em decorrência de o Brasil ter sido acusado pelas organizações não governamentais Américas Watch e Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) de não ter respondido adequadamente às denúncias de prática de trabalho análogo à escravidão e de haver desinteresse e ineficácia nas investigações e processos referentes aos criminosos.

No decorrer do processo na CIDH o Brasil reconheceu pela primeira vez sua responsabilidade pela existência de trabalho escravo no país e também se comprometeu a adotar medidas – incluindo modificações legislativas – para prevenir e punir outros casos, além de iniciativas de conscientização sobre o tema.

Paradoxo – “Vê-se, assim, que a decretação da prescrição fará do caso José Pereira um paradoxo: o caso que chega às instâncias internacionais, via Sistema Interamericano de Direitos Humanos, origina acordo internacional firmado pelo Brasil, alcança ampla repercussão e cria novos paradigmas políticos e sociais no combate ao trabalho escravo contemporâneo, é o mesmo que confirma e se torna índice daquilo que ele próprio denunciou, a manutenção da impunidade e o não cumprimento das obrigações internacionais de proteção e defesa dos Direitos Humanos, mesmo após o Estado brasileiro ter se responsabilizado pelas violações e se comprometido a executar as recomendações estabelecidas”, alerta o MPF.

As procuradoras da República lembram que em outro caso de trabalho escravo no Brasil, julgado em 2016 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, o caso Fazenda Brasil Verde – que, assim como a fazenda Espírito Santo, onde José Pereira foi vitimado, está localizada no município de Sapucaia (PA) –, a corte declarou que a prescrição “é incompatível com a obrigação do Estado brasileiro de adaptar sua normativa interna de acordo com os padrões internacionais”, ressaltando que a figura da prescrição representou uma violação ao artigo 2 da Convenção Americana de Direitos Humanos, tendo em vista que se constituiu em um elemento determinante para manter a impunidade dos fatos constatados.

“Não apenas o eventual reconhecimento da ocorrência de prescrição do presente caso conduziria, certamente, a um ilícito internacional, pondo o Brasil na perspectiva de ser levado à Corte IDH, que, em um tal caso, diante de sua jurisprudência, decidiria em desfavor do Estado brasileiro, como tal declaração ofenderia frontalmente a própria Constituição da República, tendo em vista o que esta dispõe em seus artigos 1º, incisos II e III, 4º, II e 5º, §§ 1º, 2º e 4º e o posicionamento consolidado no âmbito do Supremo Tribunal Federal, aqui exposto, de que os estatutos de direitos humanos incorporados pelo Brasil ao ordenamento jurídico interno possuem caráter de norma supralegal, afastando qualquer disposição de caráter legal com ela conflitante”, destaca o MPF.

Tribunal – No Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília (DF), onde em fevereiro de 2016 um dos réus interpôs recurso para pedir a anulação de atos processuais e a decretação da prescrição do crime de submissão a trabalho escravo, o MPF também defende a imprescritibilidade.

A prescrição penal é inadmissível e inaplicável quanto se tratar de violações muito graves aos direitos humanos nos termos do direito internacional, como vem assinalando a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, registrou manifestação do MPF enviada ao TRF-1 em março do mesmo ano.

A imprescritibilidade do crime cometido mediante graves violações a direitos humanos decorre da própria imprescritibilidade do direito da vítima, de sua família e da sociedade de ver punidos os responsáveis por tais transgressões, destacou o MPF.

O recurso do réu Francisco de Assis Souza de Alencar aguarda julgamento no TRF-1. Caso o recurso seja negado, a Justiça Federal pode realizar júri para julgamento de Alencar e dos outros três acusados: Augusto Pereira Alves, José Gomes de Melo e um quarto funcionário da fazenda Espírito Santo identificado apenas como Carlão.

Saiba mais – Prescrição da pretensão punitiva é um termo que refere-se à perda do direito do Estado de punir ou de executar a pena pelo decurso do tempo, extinguindo a punibilidade do acusado ou condenado (fonte: glossário de termos jurídicos do site do MPF/BA).

Processo nº 0005216-83.2015.4.01.3901 – 1ª Vara da Justiça Federal em Marabá (PA)

Íntegra da manifestação do MPF

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