Para especialistas, avanço da pecuária na região norte é a “linha de frente” para expandir da fronteira agrícola
Dos dez estados onde a criação de boi mais cresceu em 20 anos, oito estão na Amazônia Legal — região composta pelas nove unidades federativas que estão dentro do bioma, na região Norte e parte do Centro-Oeste do Brasil.
Com exceção do Amapá, que acumulou uma queda de quase 38,8% do número de cabeças de gado em duas décadas, Acre, Pará, Rondônia, Amazonas, Roraima, Mato Grosso, Maranhão e Tocantins lideram, nesta ordem, o ranking dos locais que mais aumentaram o efetivo de bois nas últimas duas décadas.
No Acre, por exemplo, a população bovina chegou a aumentar 151,7% entre 1996 e 2017.
Em número absolutos, o Mato Grosso, que também integra a Amazônia Legal, é o estado que mais concentra a criação bovina, com mais de 24,1 milhões de cabeças de boi.
O levantamento feito com base nos dados do Censo Agropecuário de 2017 comprova, para especialistas consultados pelo Brasil de Fato, o avanço da fronteira agrícola para o Norte do país. Ou seja, a expansão das áreas agricultáveis utilizadas pelo agronegócio.
O professor do Instituto de Geografia da Unesp (Universidade Estadual Paulista), Bernardo Mançano, explica que a movimentação da pecuária abre caminho para que a monocultura também avance para aquela região.
“O gado vai abrindo caminho, derrubando a floresta. Depois, com o aumento do preço das terras por causa da infraestrutura que foi construída, vem o grão e o gado continua avançando”, aponta o professor.
É o que também pontua o integrante da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Ulisses Manaças, que atua no estado do Pará. Segundo ele, a fronteira agrícola avança no país porque o modelo do agronegócio é insustentável.
“A pecuária permanece sendo a linha de frente do trabalho de consolidação da ocupação da Amazônia pelo agronegócio. Ela faz o trabalho sujo: desmata pela indústria madeireira e joga o gado para amansar a terra. Então, a pecuária é o grande pólo de expansão da região. É o trabalho sujo, a linha de frente; digamos, a infantaria do agronegócio na Amazônia”, diz.
Nova fronteira agrícola
Entre 1996 e 2006, o efetivo bovino cresceu 15% no país. Naquele momento, 17 estados registraram crescimento do número de bois. Já na década seguinte, entre 2006 e 2017, o gado registrou, de maneira geral, queda de 2,4% e só nove estados viram a população bovina crescer, sendo seis deles na região Norte.
Estados do Centro-Oeste e do Sudeste que se destacam pela atividade, como Minas Gerais e Mato Grosso do Sul, tiveram redução da sua produção bovina entre 2006 e 2017, de 4% e 12%, respectivamente.
O professor explica que, na última década, os investimentos se deslocaram e passaram a incentivar mais os commodities agrícolas (soja, cana-de-açúcar e milho, por exemplo) do que o suporte à criação de gado.
“A diminuição da pecuária está no sentido de que a produção de commodities — grãos como a soja e o milho — passa a ocupar o território da pecuária porque dá uma rentabilidade muito maior. Por isso, a pecuária tem que procurar terras mais baratas; enquanto a produção de commodities agrícola ocupa o lugar da commodity pecuária.”
Em São Paulo, por exemplo, o cultivo de cana-de-açúcar é responsável pelo declínio da pecuária. No estado, nos últimos dez anos, a população bovina de 10,5 milhões, em 2006, para pouco mais de 8,3 milhões em 2017 — uma baixa de 20,73%. Por isso, a pressão nos estados do norte se intensificou.
Isso também explica porque o número de cabeças de gado caiu, na última década, na chamada região do Matopiba, compostas pelos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, que se destacou na ampliação do agronegócio.
Outra razão, de acordo com o professor, é o processo de financeirização da agricultura.
“Os fundos de pensão, os fundos soberanos e os fundos privados passaram a investir muito na produção de grãos. E isso fez com que tivéssemos um crescimento da área plantada, maior concentração de terra e crescimento das propriedades com maior área porque a agricultura não está trabalhando, somente, com o capital das empresas; ela está trabalhando em uma proporção maior com o capital financeiro.”
Entra o boi, sai a floresta
O especialista em Amazônia do Greenpeace, Rômulo Batista, se preocupa com os impactos socioambientais trazidos com a criação de gado na região norte.
Segundo ele, a atividade é o principal motivador do desmatamento da Amazônia. “A pecuária, sozinha, responde por mais emissão de gases do efeito estufa do que o setor de transporte. Além de toda a conversão de floresta”, afirma.
De acordo com o Censo Agropecuário, o Pará foi o estado que perdeu maior área de matas, com cerca de 4 milhões de hectares devastados; seguido do Mato Grosso, com pouco mais de 2 milhões de hectares.
Batista lembra que a flexibilização do Código Florestal, em 2012, deu anistia aos desmatadores e incentivou a aceleração do ritmo de ocupação da Amazônia.
“Infelizmente, o desmatamento, que já é muito grande e uma perda terrível das especificidades e das florestas, traz também junto a violência — seja ela a disputa da terra, seja ela uma invasão das terras indígenas e unidades de conservação, que acabam também motivando alguns movimentos políticos”, diz.
Ulisses Manaças, do MST, também destaca o aumento dos conflitos ambientais e por terra.
“Nas grandes regiões onde a gente atua, a gente sempre teve essa relação direta com os pecuaristas no enfrentamento da política. Houve um intenso processo de lutas e enfrentamentos na região porque esse latifúndio que trabalha com a pecuária é ignorante e atrasado. É elo frágil da cadeia, o enfrentamento na ponta. Eles mantêm grupos e milícias armadas. Sempre teve um intenso trabalho de enfrentamento nessa região. Na região amazônica, eles têm sido nossos principais inimigos”, relata o dirigente.
Segundo relatório da Comissão Pastoral da Terra, em 2017, Pará e Rondônia, que registraram 22 e 17 mortes respectivamente, lideraram a lista do número de assassinatos ocorridos em decorrência de disputas políticas no Brasil rural.
Edição: Juca Guimarães