O resultado das eleições presidenciais brasileiras ainda causam perplexidade mundo afora. Legitimado pela força do voto, um candidato que sempre se caracterizou pelo desprezo pelas regras do jogo democrático recoloca na cena política brasileira o fantasma do autoritarismo.
Por Maria Valéria Duarte de Souza*
Muitos se perguntam onde se escondia esse autoritarismo que se materializou não apenas em votos, mas também na defesa, muitas vezes extremada, de um candidato que fez da violência e da apologia de regimes autoritários sua principal estratégia de marketing político. A resposta não poderia ser mais desconcertante: o autoritarismo sempre esteve aqui, muitas vezes mal disfarçado sob o véu tênue da imagem de um país cordial, ordeiro e pacífico.
Ditaduras, golpes de estado, essas tragédias que marcam a nossa história republicana, e a escravidão, a maior de todas as tragédias, origem de todas as outras , atestam o caráter autoritário que persegue a vida brasileira. Porém , é a primeira vez que teses autoritárias recebem chancela do voto, símbolo da democracia.
Cabe aqui destacar, que, como sabemos, o sucesso eleitoral da extrema direita não é algo novo nesses tempos de capitalismo financeirizado que vê na democracia um obstáculo para sua expansão . Exemplos não faltam : na Europa, Áustria e Hungria elegem governantes cuja pauta xenófoba seduziu o eleitorado e nem a Suécia escapou de ver crescer nas eleições realizadas em setembro último a bancada de um até então inexpressivo partido de extrema-direita que é atualmente a terceira maior força política no Parlamento daquele país.
Porém , no Brasil, a chegada da extrema direita ao poder, mesmo que pela via do voto, traz consigo o risco considerável de cairmos novamente no autoritarismo ainda que realizado sob a falsa aparência de um estado de direito e com “o pleno funcionamento das instituições” .
O presidente eleito em 28 de outubro não recebeu um “cheque em branco” do conjunto da sociedade brasileira, uma vez que os votos recebidos por seu oponente, somados aos que preferiram não optar por nenhum dos dois candidatos ultrapassam em muito a sua votação. Mesmo assim, não é prudente minimizar o fato de que este candidato alcançou êxito utilizando-se, resguardadas as condições sócio-históricas de cada momento, dos mesmos paradigmas que estavam presentes em 1964: o militarismo, o moralismo e o fundamentalismo religioso.
No Brasil, o militarismo cujas, origens remontam ao Império, ganha forma e força com a República. Várias foram as ocasiões em que os militares agiram na derrubada de governos em nome do restabelecimento do que julgavam ser a normalidade democrática. Não por acaso, os chamados a uma intervenção militar eram palavra de ordem frequente nas manifestações que antecederam ao golpe que culminou com a deposição da presidenta Dilma.
Ao fazer a apologia do regime autoritário instaurado em 1964 e chamar para seu vice um general da reserva, o candidato eleito sabia muito bem que o imaginário do militarismo já estava presente na parcela do eleitorado conservador.
Associado a essa nostalgia militarista, ganhou força o moralismo se manifestou na demonização de movimentos feministas e LGBT como sendo os inimigos da família, além do onipresente e seletivo discurso sobre a corrupção dos oponentes . A esses dois elementos – militarismo e moralismo – também se fez presente o fundamentalismo religioso. Se, em 1964 o golpe contou com a participação decisiva do padre Patrick Payton, vindo diretamente dos Estados Unidos encarregado de mobilizar a massa de católicos conservadores, hoje do ponto de vista da vinculação religiosa, os protagonistas do apoio ao projeto de extrema-direita estão concentrados, em sua maioria, no segmento neopentecostal do protestantismo . Tudo isso, é claro, arrematado pela desqualificação da política que, como se sabe, é a pedra de toque de qualquer projeto autoritário.
O candidato eleito está longe de ter obtido o consenso necessário para o que muitos consideram nossa maior urgência: pacificar um país dividido e que se perdeu de si mesmo. Porém , mesmo sem ter oferecido o consenso, é inegável que essas eleições deixaram as claras o autoritarismo latente na sociedade brasileira, sem o qual esse personagem jamais teria saído das sombras.
Combater as condições que fazem com que a tentação autoritária ainda esteja tão presente na sociedade brasileira é uma tarefa histórica de grande envergadura e que , ao lado da resistência a um governo que não demonstra qualquer respeito pela democracia, definirão o que será o Brasil das próximas décadas. Uma tarefa inadiável sem a qual as gerações futuras correrão o risco de que seja ainda atual, em seu tempo, a análise feita pela professora Marilena Chauí (1) na qual assim define a sociedade brasileira: “Sociedade autoritária, sociedade violenta, economia predatória dos recursos humanos e naturais , convivendo com naturalidade com a injustiça, a desigualdade, a ausência de liberdade e os espantosos índices de várias formas institucionalizadas – formais e informais – de extermínio físico e psíquico e de exclusão social, política e cultural”.
*Maria Valéria Duarte de Souza é graduada em Serviço Social, com especialização em Planejamento e Gestão e mestrado em sociologia, e militante do PCdoB no Distrito Federal.
Nota:
(1) CHAUI, Marilena de Souza. 500 anos. cultura e política no Brasil. In: Revista Crítica de Ciências Sociais n 38. Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais, dezembro 1993.