Mesmo em discussão na Câmara, muitas medidas estão sendo implementadas em instituições de ensino
O professor e coordenador do curso de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC), Salomão Ximenes, conversou com a reportagem do Brasil de Fato durante o programa no Jardim da Política. Ele falou sobre o Projeto de Lei -PL 7180/14, conhecido como “Escola Sem Partido”.
O PL, que tramita na Câmara dos Deputados em Brasília, é apoiado pelo presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) e visa proibir o debate sobre sexualidade e gênero nas escolas.
O professor que também membro da Rede Escola Pública e Universidade e da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, afirma que o projeto é uma ameaça a pluralidade de ideias e serve de instrumento de dominação.
Confira a íntegra da entrevista:
Brasil de Fato: Qual é a sua expectativa em relação ao Projeto de Lei Escola Sem Partido?
Salomão Ximenes: Este projeto vem sendo discutido há mais de dois anos numa Comissão Especial criada na Câmara dos Deputados com um viés favorável. Um viés de uma bancada que é mais do que conservadora: é uma bancada do fundamentalismo religioso que chega a ser criminoso em alguns aspectos. Muito provavelmente, ele será aprovado se for colocado em votação ainda este ano.
Há toda uma resistência da oposição no sentido de impedir que o projeto seja votado e, uma vez aprovado nessa comissão, certamente, será apresentado um recurso para que ele seja discutido no plenário. Não nos desesperemos. Temos muita resistência ainda a fazer. Tem a tramitação na Câmara, tem a mudança de legislatura. Caso ele não sai da Câmara até o final do ano, ele tem que reiniciar no próximo. Também tem todo um debate a ser feito no Senado Federal em torno deste projeto.
Além de servir de palanque para esses movimentos, este projeto é muito preocupante do ponto de vista de seu conteúdo. E, a despeito da lei nacional não ter sido aprovada, muitas dessas medidas, incentivadas por essa lei, já vem sendo implementadas nas universidades e nas escolas públicas brasileiras de todo o país com ações de censura, ações autoritárias e ações ilegais. Isso é o que mais nos preocupa. Algumas ações podem até configurar crime, mas vêm sendo praticadas no país.
O senhor afirmou que o projeto faz parte de um pensamento fundamentalista. Um dos pontos que mais chamou atenção é sobre a questão do gênero, que eles chamam de “ideologia de gênero”.
O projeto original do Movimento Escola Sem Partido foi criado por poucas pessoas na metade da década passada e tinha pouca visibilidade até os anos de 2002, 2003, 2004. Esse projeto propunha, basicamente, que fossem colocados nas salas de aula os deveres do professor. Entre esses deveres estaria o de se manter neutro em relação a qualquer temática, ou seja, uma censura geral e irrestrita ao tratamento das temáticas em sala de aula.
Este projeto ganha um reforço significativo com a entrada da discussão da “ideologia de gênero”. É aí, ele começa a se tornar visível no Brasil. Essa vertente da “ideologia de gênero”, originalmente, não é a mesma da Escola Sem Partido. É uma vertente do campo religioso.
É importante dizer que ela não nasce no campo protestante – evangélico-neopentecostal. Ela vem do campo católico. Essa é uma doutrina da igreja católica para fazer a disputa cultural na sociedade sob a concepção de gênero. E agora, no Brasil, essa ideia ganha o reforço das igrejas neopentecostais, que têm atuado fortemente na política brasileira.
Essa ideia de “ideologia de gênero” é colocada dentro do projeto Escola Sem Partido naquele movimento de 2013, 2014. Os planos municipais, estaduais e nacional de educação foram monitorados por esses grupos a fim de evitar qualquer previsão das temáticas de gênero e sexualidade nas escolas.
Tem uns casos anedóticos em que foram retirados, censurados de planos de educação, o tratamento de gêneros alimentício ou de diversidade ambiental. Isto porque a turma procurava no arquivo qualquer menção à palavra gênero independente do que se tratava.
Esse movimento foi muito forte em alguns municípios e estados. Isso mobilizou muita gente contra e a favor. E é nesse momento que esta agenda do Escola Sem Partido se casa com a agenda do que se chama “ideologia de gênero”. E ganha, aí sim, uma maior repercussão: com redes sociais e movimentos sociais de direita, que vão estar na base do processo que leva à eleição de Bolsonaro. As redes de comunicação, de mobilização que estavam naquele processo são, basicamente, as mesmas que estiveram mobilizadas em torno da candidatura do Bolsonaro.
Algumas pessoas compreendem esse debate sobre “ideologia de gênero” como uma cortina de fumaça. Como o sr. compreende essa discussão?
Eu acho equivocado entender que este debate do Escola Sem Partido ou debate da “ideologia de gênero” é uma cortina de fumaça. É um debate estruturante na educação brasileira enquanto projeto educacional. O objetivo é impor uma posição de reprodução, de dominação de gênero, de raça e de classe.
Inclusive os governos do PT começam a recuar, mesmo o Escola Sem Homofobia foi retirado da pauta por uma decisão política da Presidenta [Dilma Rousseff] da época em função da pressão da bancada evangélica.
No entanto, tiveram algumas políticas educacionais que tentaram promover o debate sobre a diversidade. Na questão racial, a lei 10.639 foi aprovada por Lula em 2003. A norma obriga o ensino da história da África e da cultura afro-brasileira nas escolas. Esta medida fortalece a demanda do movimento negro por ter reconhecido a história desses povos no Brasil e da promoção do debate sobre o racismo.
Em seguida, o Brasil Sem Homofobia e depois o Escola Sem Homofobia, que vulgarmente foi chamado de “kit gay”. Na verdade, era programa que visava levar o debate sobre a homofobia e a lesbofobia para as escolas, no sentido de reconhecer também a diversidade nas escolas. Essas políticas tiveram um momento inicial, mas elas nunca chegaram a se constituir de fato como políticas curriculares estruturantes na educação brasileira.
O projeto será a principal agenda do Ministério da Educação no governo Bolsonaro. Então, se tenta na verdade sair dessa posição de veto das políticas de diversidade para uma política pública de censura, que retira o poder das escolas de discutir qualquer temática que signifique mudança social, enfrentamento à desigualdade, à discriminação e ao racismo.
Durante o período eleitoral, policiais federais, PMs e fiscais interrogam professores, vetam atividades, arrancam faixas e apreendem materiais nas universidades. Estas ações podem ser caracterizadas como uma forma de coação, de intimidação e de censura como vimos em outros períodos da história?
O movimento de censura no viés político, aquela paranoia anticomunista, sempre foi utilizado como detonador do controle social e de posições autoritárias nas instituições de ensino. É praticamente uma regra mundial dos regimes e sistemas autoritários, como é o caso do que estamos vivendo no Brasil. Lamentavelmente, há uma progressiva redução dos espaços democráticos por dentro da institucionalidade, característica do golpe institucional de 2016, que segue em curso nesse sentido.
É uma regra que as instituições de ensino sejam alvos prioritários do controle ideológico. Você vê isso nos regimes fascistas, no Macarthismo nos EUA, na ditadura civil militar na América Latina.
A característica que se destaca nesse momento no Brasil tem a ver com censura à diversidade. Este elemento é igualmente relevante nos movimentos de censura, não só na censura política, mas também na ideia de que a escola deve se manter numa posição secundária em relação às famílias e às igrejas em matéria de sexualidade e de moral.
Essa é uma concepção conservadora clássica que tenta se impor por esse movimento, ou seja, a escola não deve ir contra a concepção das famílias e das igrejas em matéria de sexualidade e de moral, portanto, grupos religiosos privados tentam impor sua visão de mundo, de forma totalitária, autoritária dentro da escola pública. É disso que se trata.
Estudantes universitários acusaram uma professora de praticar “doutrinação ideológica” por ela ter apresentado a teoria do educador e pedagogo Paulo Freire em um curso de Pedagogia. Como o sr. avalia esse cenário?
O que mais preocupa é que nossa resistência não tem impedido a disseminação e a ampliação dos movimentos de censura nas escolas e nas universidades. É importante dizer que é uma ação de promoção e de perseguição ao magistério, sobretudo ao magistério público. É uma ação articulada e forte no país, que envolve instituições religiosas, meios de comunicação e redes sociais. A matéria [o projeto de lei Escola Sem Partido] falava também de professores de escolas privadas, que, digamos, é um ponto mais frágil, porque se quer tem uma carreira docente que os proteja.
Também nos preocupa o movimento de autocensura. Surgiram na mídia e no debate público situações de perseguição a docentes que foram constrangidos, que tiveram seu material de aula divulgados e que foram denunciados para a Secretaria de Educação. Ainda que essas denúncias, em geral, não tenham dado em nada, porque não têm violação nenhuma a dever funcional, isso gera medo nos professores e professoras. Eles acabam se censurando para evitar esse tipo de confronto. É difícil mensurar o tamanho do prejuízo que essa autocensura pode causar na construção do sujeito e na formação da cidadania.
De que forma tem ocorrido estas denúncias? Existe algum tipo de monitoramento?
Esse movimento de denúncia se dá de diferentes formas. Ele vai desde uma notificação extrajudicial, que é disseminada pelo Movimento Escola Sem Partido, a uma intimidação formal dos docentes. Estas denúncias podem, eventualmente, gerar abertura de procedimento administrativo funcional.
Não é que tenhamos centenas de milhares de procedimentos administrativos ou notificações extrajudiciais, o que temos são poucas ações com grande repercussão. Isso gera esse movimento de autocensura, até porque, algumas destas movimentações de censura e intimidação são feitas por deputados e vereadores, que fazem parte desse movimento ultraconservador-reacionário.
Tivemos na cidade de São Paulo o caso de um vereador que tentou impedir uma atividade municipal que abordava a temática de gênero. Tentativas como esta acabam ganhando repercussão mesmo que não funcionem. Elas levam ao movimento de autocensura.
Nesse sentido tem surgido um conjunto de iniciativas para esclarecer, para trazer informações jurídicas sobre as políticas pedagógicas a fim de fortalecer o papel dos professores e das professoras. Para afastar esse medo da censura e fortalecer a liberdade em sua atuação nas escolas, nós acabamos de lançar essa semana o Manual de Defesa Contra a Censura nas Escolas, que é uma incitava coordenada por mais de 60 instituições do país, entre elas, a Rede Pública pela Universidade, a Campanha Nacional pelos Direito à Educação, a Ação Educativa, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação e o Andes. Nós temos que sair da defensiva que tem nos levado a esse movimento de autocensura.
Jair Bolsonaro prometeu acabar com as escolas de formação ligadas a movimentos sociais, principalmente, ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Qual a sua avaliação a respeito desse tipo de declaração do presidente eleito?
É uma declaração autoritária e que vai no campo educacional convergir para um movimento que já tem algumas décadas: o de pasteurização da educação, ou seja, de homogeneização curricular. Esta movimentação acaba legitimando e fortalecendo o Escola Sem Partido.
Assim, como o Escola Sem Partido fortalece pretensões de padronização curricular, alguns apoiadores do projeto de lei trabalham a ideia de que o professor não é educador. Ele ensina português, matemática. Reduzir o processo educacional escolar a estes aspectos retira da escola o papel de estabelecer uma proposta pedagógica que seja articulada as diretrizes curriculares mais gerais com as demandas, as pretensões, os objetivos de sua comunidade.
Essa escola, que eu mencionei que foi atacada por um vereador em São Paulo, é a escola municipal Amorim Lima. Uma escola que tem reconhecidamente um projeto pedagógico diferente, alternativo. Então, qualquer projeto pedagógico nesse sentido, que fuja da padronização que vem sendo imposta, passa por essa limitação.
Com a radicalização do autoritarismo, a Escola Sem Partido traz severas ameaças a essas experiências escolares diferenciadas e plurais. O direito constitucional à educação fala do pluralismo de ideias, de concepções pedagógicas e em gestão democrática. A LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação – fala em articulação escola e comunidade idealmente.
Cada escola deveria ter um projeto pedagógico de fato, ou seja, uma proposição política pedagógica, um desenho diferente, articulado ao seu contexto. E o movimento que tem acontecido é o de esvaziamento quase que completo dessa dimensão da diversidade via um processo de tecnificação de adestramento de docentes. A ideia de educação escolar acaba sendo descaracterizada.
Edição: Katarine Flor