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Por Paulo Fonteles Filho

O fatídico 31 de agosto de 2016 será lembrado como o dia da infâmia quando, no futuro, nos debruçarmos sobre a recente história da construção da nossa nacionalidade.

Nestes dias de tormenta – onde homens ricos e brancos assaltam a frágil democracia e destituem a presidenta Dilma Rousseff, num claro golpe contra o povo e os trabalhadores – é preciso retirar lições e ensinamentos para a dura luta que virá no horizonte da brasilidade ultrajada.

A história de mais de 500 anos do Brasil revela-nos que as elites tupiniquins, além de subservientes às metrópoles, sempre estiveram em lado oposto aos interesses nacionais e populares, de liberdade, democracia, cultura, terra, trabalho, direitos sociais, desenvolvimento e verdadeira independência.

A resistência popular fecundou-nos nos entrançamentos de profunda mestiçagem – pelos dias e pelos séculos – que desmente as teses falsas de uma ‘índole pacífica’, atribuída aos brasileiros sob o clarão civilizatório que ensejamos no mundo. Índios e negros, rompendo com a escravidão, ousaram motins e rebeliões e, armados na consciência, espetaram a carne dos tiranos.  As lutas operárias e populares de nossos tempos carregam aqueles acordes, aqueles tambores de que, enfim, somos firmados numa espiral de sangue e combate.

A destituição de Dilma coloca-nos a reflexão sobre nossas rupturas incompletas, momentos cuja efervescência progressista ensejou colocar o país e o povo numa situação nova, avançada. Mas, ao mesmo tempo, sem romper em definitivo com as forças políticas do passado.

Esse processo têm suas raízes fincadas no início das contendas contra a opressão colonial, ainda no século XVII, em Guararapes, na Inconfidência Mineira – que projetou a heroica figura de Tiradentes – e na Conjuração Baiana de 1798, de plataforma abolicionista. O estuário daquelas jornadas desembocou numa vaga de revoluções entre 1817 até 1850, quando o país viveu o agito da Confederação do Equador, a Guerra da Independência e a gigantesca epopeia popular da Cabanagem na Amazônia, dentre outros importantes movimentos insurgentes.

A conquista da autonomia política, em 1822, não significou o desaparecimento de setores agro-mercantis, aliados internos e externos da exploração estrangeira, formados no período colonial, e que estiveram à frente da transição para o novo regime, dominando a política, a economia e o pensamento nacional. O projeto latifundiário, dos traficantes de escravos e dos interesses dinásticos da Casa de Bragança substituiu a plataforma autonomista de José Bonifácio de Andrada.

Mesmo com o país dominado por uma monarquia escravagista – com forte predomínio conservador – os brasileiros continuaram regando seus anseios por direitos, liberdade e democracia. A luta abolicionista – onde se destacaram as figuras de Joaquim Nabuco e Luís Gama – promoveu o encontro dos que queriam terras, autonomia política e a República. Foi o primeiro movimento genuinamente nacional que mobilizou ondas de protestos, numa multitudinária luta de massas, que incluiu escravos rebelados, setores médios urbanos, a intelectualidade progressista e a nascente classe operária tupiniquim.

A Abolição, como obra renovadora, foi coroada com a instauração da República, que indicava para o desenvolvimento democrático e autônomo, anseio nacional antigo. No entanto, a República foi conquistada sob a hegemonia de políticos moderados, ligados à elite modernizante, que buscaram isolar figuras radicais – como Lopes Trovão, Silva Jardim e Raul Pompéia – e preferiram mobilizar o Exército para expulsar o Imperador ao invés de calçar os elementos mais populares e avançados daquelas jornadas.

A história do surgimento da República foi, em certa medida, marcada pelo enfrentamento entre o programa arcaico das oligarquias e o colonialismo contra o programa republicano, radical e consequente, voltado ao atendimento das demandas nacionais e às necessidades dos brasileiros, no sentido de moldar o Estado no sentido da promoção da democracia, na integração nacional, na distribuição de terras, no desenvolvimento e na inadiável emancipação nacional.

A luta transformadora no Brasil já alcança a moderna luta de classes nas primeiras décadas do século XX, como foi o caso da histórica greve de 1917, liderada pelos anarquistas. O surgimento do Partido Comunista do Brasil e a Semana de Arte Moderna, em 1922, sinaliza importante fator de superação com o passado – na política e na cultura – e o protagonismo do pensamento social avançado, arrebatador de jornadas populares e proletárias, ao passo que passamos a nos reconhecer mestiços e tropicais, segundo as obras de Mario de Andrade, Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral, dentre outros.

O movimento de 1930, que derrotou a República Velha, levou o Brasil ao início de uma nova fase em sua história. A despeito de seus limites, introduziu o país no século XX, dando impulso à consolidação do capitalismo nestes quadrantes do mundo. Entretanto, a tradição brasileira de rupturas incompletasmanifestou-se outra vez: as forças dissidentes das classes dominantes, no comando daquele movimento, afastaram os trabalhadores e o povo do movimento transformador.

Eram dias desenhados com o avanço do proletariado em todo o mundo, inspirado pela Revolução Russa de 1917 e pela construção do primeiro Estado socialista, exemplo que acentuava o temor que a elite tinha dos trabalhadores. Os novos governantes apoiaram-se em forças policiais e militares porque tinham medo de mobilizar as massas e não à toa um importante líder liberal chegou a cunhar a seguinte frase: “façamos a revolução antes que o povo a faça”.

Apesar das medidas adotadas, de caráter democrático-burguês, o novo governo, dirigido por setores da burguesia e facções dissidentes da oligarquia agrária, mantém o monopólio da terra e não enfrenta a penetração do imperialismo no país. Cresciam também a ameaça fascista, adversária da democracia, contra as quais surgiu, em 1935, a Aliança Nacional Libertadora, uma frente única que congregou amplas forças sociais na luta contra a ameaça integralista.

A ação pusilânime do governo levou à implantação da Lei de Segurança Nacional contra o movimento democrático e progressista e, em 1937, à instauração do Estado Novo. Após o início da II Guerra Mundial, e principalmente depois da agressão hitlerista à União Soviética, forças populares e patrióticas iniciaram grandes ações de massa contra o fascismo e em defesa da democracia, forçando a entrada do Brasil na guerra contra o nazi-fascismo e ao fim do Estado Novo, em 1945.

Abria-se, então, nova etapa, democrática, na vida brasileira. Apesar das conquistas registradas, principalmente na Constituição de 1946, os setores mais reacionários das classes dominantes continuaram ativos, tendo forte presença nas Forças Armadas e na Escola Superior de Guerra (ESG), fundada em 1949 e sementeira dos terríveis dias que se seguiram no pós-64.

A conquista de liberdades democráticas, mesmo limitadas, levou ao crescimento da influência das forças progressistas. Sua principal expressão foi à atuação do Partido Comunista do Brasil, que elegeu uma notável bancada naquela Constituinte, obteve cerca de 10% dos votos na eleição presidencial de 1945, e em 1947 elegeu inúmeros vereadores em grandes cidades brasileiras e que teve seu registro cassado e lançado à clandestinidade, semelhante ao que urgem fazer ao PT e demais forças democráticas na atualidade.

A vida brasileira foi marcada, naqueles anos, por grandes campanhas de massa, dirigidas pelos comunistas, democratas e patriotas cujo alvo era o imperialismo estadunidense e a reação interna. Num programa de que reunia a luta pela saída dos militares norte-americanos de bases no Nordeste, a campanha “O Petróleo é Nosso”, a bandeira da reforma agrária e pela consolidação da democracia, os movimentos contra a carestia e por melhores condições de vida para os trabalhadores fez a consciência social elevar-se e cresceu a compreensão de que o imperialismo norte-americano tomara-se o principal inimigo da nação e fator de subserviência e atraso do país.

A ditadura militar – realização da facção mais reacionária e conservadora das classes dominantes, aliada aos interesses estrangeiros e por eles apoiada – foi a dura resposta ao efervescente movimento democrático que ensejava reformas estruturantes e de feições anti-imperialistas daqueles anos 60.

A quartelada militar amplificou a subordinação do Brasil aos interesses dos ricos do mundo, particularmente ao norte-americano, eliminando arbitrariamente aquelas limitadas conquistas sociais e democráticas alcançadas. Foi um período de trevas, com torturas, assassinatos, censura e desaparecimentos forçados de opositores ao regime de exceção.

O processo repressivo iniciado em 1964 durou 21 anos. Foi derrotada pelo movimento democrático de massas, a resistência armada do Araguaia, a luta pela Anistia política, pela Constituinte, o movimento estudantil, as greves operárias em 1978/1980, e pelas multidões que, em 1984, exigiram Diretas-Já. Apesar das manipulações espúrias que evitaram a eleição presidencial pelo voto popular, o colégio eleitoral foi, afinal, palco da queda daqueles que se opunham às mudanças, com a derrota do candidato dos generais e a vitória de Tancredo Neves na última eleição presidencial indireta, em janeiro de 1985.

Com a débâcle da URSS – em fins dos anos de 1980 – e a crise sistêmica do capitalismo permitiu a ruptura neoliberal e do Consenso de Washington, período marcado pela maximização do capital, guerra contra povos e nações, deterioração da vida dos trabalhadores e a santificação do mercado em detrimento aos anseios e demandas civilizatórias.

No Brasil, Fernando Collor de Mello – expulso da presidência nas jornadas do “Fora Collor” – e Fernando Henrique Cardoso impuseram-nos tal agenda regressiva, de privatizações, liquidação de direitos e criminalização das lutas de nosso povo, além de representarem o abandono do esforço contraditório, mas persistente, de busca de um modelo nacional de desenvolvimento, com a valorização do trabalho, representado pela tradição iniciada em 1930.

Os anos de Lula e Dilma, entre 2003 até 2016, pôs o Brasil em nova situação, abrindo o ciclo mais avançado da vida nacional, de democracia, distribuição de renda e afirmação de direitos. Ensejaram o ineditismo de um operário e uma mulher ocuparem o principal posto de liderança do país, derrotando nas urnas por quatro vezes seguidas as teses neoliberais representadas por José Serra, Geraldo Alckimin e Aécio Neves, homens brancos e ricos, aliados internos das agências financeiras internacionais.

A estratégia implementada pelos governos populares versou, sobremaneira, na perspectiva de promover o desenvolvimento socioeconômico de longo prazo – nunca havido no país – de inclusão e proteção social, com radical redução da pobreza e igualdades e oportunidades para todos. A plataforma avançada, anunciada em 2002, e reiterada em diversos documentos e pronunciamentos oficiais ao longo de quatro mandatos teve como égide o crescimento com baixa inflação e redistribuição de renda, associado ao modelo de consumo de massa. À semelhança dos governos Lula, Dilma manteve-se firme no resgate da dívida social e no combate à corrupção, mesmo numa situação internacional deteriorada pela crise sistêmica do capitalismo e brutal contração econômica mundial.

O golpe institucional que ascendeu Temer à presidência da República, num conluio midiático, jurídico e parlamentar revela-nos, novamente, o dilema histórico da luta entre o velho e o novo, entre o povo e as elites, entre a nação e a tirania estrangeira, entre o futuro e o passado.

Só uma imensa onda de lutas, de caráter avançado, popular e nacional poderá resgatar a democracia ultrajada, recuperando a presidência usurpada, o instituto do voto e completando a verdadeira ruptura com o atraso e o obscurantismo.

Fé na luta!

#ForaTemer