Para Ronaldo Fonteles

Por Paulo Fonteles Filho.

Nesses dias frios,

onde a pele das palavras compreende o mundo,

como na filosofia,

sigo com o coração em Cervantes.

Este exílio forçado pela mão abjeta do verdugo

não permite que meus passos

sejam vacilantes e,

eclipsado pelas massas que acompanho silencioso,

observo o declínio dos dias,

quase frios,

tão amenos que já nem transpiro

suores desvendados.

O tempo secreto dos sentimentos fenece

quando escuto os estrondos do mar revolto.

Diante das inclinações

e das imensas águas que flutuam entre as pedras,

toco

com mãos ávidas,

a obra da vida.

A imensa vida que se põe

entre as retinas

e o mundo subterrâneo das palavras,

sem mistificações.

Em cada nascente ou poente,

na transição do tempo,

sinto que as estações – em harmonia – nos fazem

ter os pés fincados na terra,

como raízes,

num chão vermelho de onde só brotam ideias.

O pensamento

– que já voa longe –

disputa o céu com carcarás

e outros predadores morais.

Como Dom Quixote

fui ao mundo,

às pressas,

angustiado,

com poucas roupas,

com o universo que se abre,

apesar de não compreendê-lo.

Os moinhos estavam lá na mocidade,

entre o rosto do povo

e as ruas transbordando esperanças

apenas

porque decidimos

que ficaríamos juntos

enfrentando

as botas dos tiranos.

O mundo é sempre tão mais vasto,

mas é preciso saber de onde se veio

e para onde se vai.

Assim o horizonte torna-se ilimitado, sem fronteiras.

E um vendaval soprará

porque a escravidão,

por aqui,

nunca teve fim.

Os pelourinhos estão cheios de pretos e pretas

e os chicotes são os mesmos

trazidos em navios negreiros,

por traficantes do medo

e mordaceiros da luz espacial e marinha.

O infinito

– talvez perdido num baú –

desabrocha inútil quando encontra a alma

que já não pode aventurar-se em terras do sem-fim,

por rios translúcidos,

diante da humanidade que resiste

em sertões que se espalham

no interior da Amazônia,

evocando o romance

sitiado

por coronéis,

mortes anunciadas,

impunidade,

espingardas,

latifúndio,

medo

e tantas resistências.

Tudo está por ser escrito,

paradoxo dos dias

e da história.

E tudo se transforma num amálgama que,

refundido,

faz com que as narrativas saiam voando

ou se encharquem de sangue e de tempo,

dentro da ambiguidade

e da ressignificação das heranças.

Aqui estamos com as armas das palavras.

Aqui vivemos, dissidentes da morte precoce.

Aqui sonhamos com a revolta dos peões.

Precisamos estar atentos à imaginação

porque, sabemos,

a potência da humanidade

exige bem mais que livros rotos,

bem mais que canções de plástico,

pornografia barata

ou filmes enlatados de John Wayne.

A imaginação é uma estratégia, também na linguagem.

É preciso,

com as baionetas do romance,

da poesia,

da memória

e do cinema de guerrilha

impor a morte de toda a barbárie,

para que nas janelas

floresçam dias ensolarados

e o pão seja servido

sempre quente em todas as mesas,

com a ternura do coração humano,

assim ensinou Thiago de Mello.

Meu irmão, rouco, canta a liberdade que virá.