por Katia Brasil

Idealizador da política de não fazer contato com grupos indígenas que vivem no isolamento voluntário na Amazônia, o sertanista Sydney Possuelo conhece profundamente o Alto Rio Jandiatuba, na Terra Indígena Vale do Javari, na fronteira do Brasil com o Peru. A região, que fica no sudoeste do estado do Amazonas, virou alvo essa semana de uma operação de varredura da Polícia Federal, com o apoio de um helicóptero do Exército, em busca de provas sobre um suposto ataque a índios isolados chamados de Flecheiros.

Em 2002, Possuelo, que foi presidente da Fundação Nacional do Índio (de 1991 a 1993), percorreu em barcos, canoas e a pé mais de 3.000 quilômetros de rios entrecortados com a floresta com o objetivo de investigar possíveis invasões de garimpeiros, pescadores e traficantes nas proximidades da região onde habitam os Flecheiros.

“E não adianta ir de helicóptero. É preciso caminhar na selva. É caminhando que você sabe das coisas. Então, nessa expedição de 110 dias, nós avistamos os Flecheiros de longe e eles nos viram”, disse o sertanista em entrevista exclusiva à Amazônia Real. “Naquele oportunidade não vimos na mata nenhum sinal de proximidade de brancos e de violência contra os Flecheiros”, completou Sydney Possuelo.

No último 03 de agosto, uma denúncia de suposto ataque aos Flecheiros chegou a servidores da Coordenação Regional da Funai em Tabatinga, município amazonense na tríplice fronteira com Colômbia e Peru. Segundo a denúncia, os acusados,  denominados de transportadores de minérios e caçadores, teriam matado mais de dez índios, entre mulheres e crianças. A data e o horário do conflito são desconhecidas, diz a denúncia.

A presidência da fundação, em Brasília, recebeu um ofício dos servidores da coordenação pedindo providências para apurar o caso no dia 10 do mês passado. A Polícia Federal abriu um inquérito apenas no dia 29 de agosto, por determinação do Ministério Público Federal do Amazonas.

Como publicou a Amazônia Realentre os dias 28 de agosto e 1º de setembro, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Exército foram ao rio Jandiatuba e destruíram, com dinamite, quatro das cinco dragas apreendidas de garimpeiros. Eles exploravam ilegalmente ouro na Terra Indígena Vale de Javari.

No dia 6 de setembro, a Polícia Federal tomou depoimentos de dois dos suspeitos de envolvimento no caso, em Tabatinga. “Eles não confirmaram as mortes”, disse no dia 11 a Funai, presidida atualmente pelo general da reserva Franklimberg Ribeiro de Freitas.

Ao jornal norte-americano “The New York Times”, Leila Silvia Burger Sotto-Maior, coordenadora-geral para povos isolados e de recente contato (CGIIC) da Funai, contou, com base na denúncia, que “foi numa conversa de bar”, na cidade de São Paulo de Olivença (AM), que três garimpeiros “se vangloriaram de cortar os corpos [dos Flecheiros] e jogá-los no rio”.

Os garimpeiros, disse ela ao NYT, alegaram que “eles tinham que matá-los ou seriam mortos”. “Há muita evidência, mas precisa ser comprovada”, completou.

Após 38 dias da formalização da denúncia à presidência da Funai, uma equipe da Polícia Federal, tendo à frente o delegado Leandro Almada, partiu de embarcação na terça-feira (19 de setembro) para a Terra Indígena do Vale do Javari. Ele foi investigar a denúncia do suposto ataque aos índios Flecheiros ouvindo as comunidades indígenas margeadas pelo rio Jandiatuba, um afluente do rio Solimões.

No município de Cruzeiro do Sul, no Acre, a Polícia Federal investiga um outro suposto massacre contra índios isolados do Vale do Javari. A liderança Adelson Kora Kanamari denunciou à Funai que entre os meses de fevereiro e maio deste ano, um produtor agrícola teria atacado os Warikama Djapá (nome na língua Kanamari, do tronco Katukina, que quer dizer Povo da Capivara) em uma área entre os rios Jutaí e Jutaizinho, também afluentes do rio Solimões.

Para o sertanista Sydney Possuelo, que trabalhou por 42 anos na Funai e, em 1987, criou o Departamento de Índios Isolados, atual CGIIC, se houver verdade na denúncia “as provas já foram prejudicadas tamanha é a morosidade” da fundação em investigar os casos “imediatamente”.

“Essa morosidade me lembra o início das investigações de um massacre contra os índios Korubo há muitos anos [em 1986] dentro da Terra Indígena Vale do Javari, na confluência dos rios Ituí e Itaquaí. Naquele massacre, a Funai e a Polícia Federal retiraram os corpos dos índios de dentro do rio Itaquaí. Foram indiciadas umas 18 a 20 pessoas.  O que aconteceu até hoje? Absolutamente nada. Ficou tudo na impunidade”, afirma o sertanista.

Sydney disse que denúncias de massacres contra os povos indígenas “não podem esperar um mês, dois meses, três meses… quatro meses. A investigação tem que ser imediata. Trata-se de vidas humanas”.

Para o sertanista, mesmo que as denúncias não sejam comprovadas elas servem de alerta às autoridades de que é possível ocorrer diante da invasão de garimpeiros, madeireiros, pescadores e caçadores às terras indígenas. “A nossa história está cheia disso. A nossa história está repleta de ataques contra os povos indígenas. Agora, tem que antes investigar. Até agora ninguém sabe o que de fato aconteceu no Vale do Javari.” Leia abaixo a íntegra da entrevista:

Possuelo na expedição que avistou índios Flecheiros em 2002 (Foto cedida à Amazônia Real por Scott Wallace)

Amazônia Real – Qual foi a primeira informação que o senhor recebeu sobre os supostos massacres contra índios Warikama Djapá e Flecheiros no Vale do Javari?

Sydney Possuelo – Olha, a primeira notícia que eu tive disso, eu estava para sair do Brasil em viagem [à Europa]. Foram três meses atrás. Veio uma notícia de massacre, mas não falava em esquartejamento. Mas era no Vale do Javari. Ninguém sabia de mais nada. Agora dizem que são possivelmente dois massacres dentro do Vale do Javari. Por que não foram investigar imediatamente?

 

Amazônia Real – A denúncia do suposto ataque aos índios Flecheiros partiu da Funai e relatou mortes de crianças e mulheres, no rio Jandiatuba.

Sydney Possuelo – O grande problema é que, até agora, ninguém sabe o que houve de fato corretamente. O rio Jandiatuba é uma extensão de água enroscada na selva. Nós temos que levantar primeiro a credibilidade: isso é verdade? E para isso ser levantado é necessário investigar. Não tem que esperar um mês, dois meses, três meses… quatro meses, sabe. A investigação tem que ser imediata. Trata-se de vidas humanas. Leva os índios do Vale do Javari junto. Eles são os melhores investigadores, entende. Leva os Matis juntos, leva os Mayoruna, leva os Marubo, eles conhecem bem o mato. Eles sabem quem passou, quem andou ou não andou. Se a Polícia Federal vai investigar, leva os índios do Vale do Javari, que podem ajudar em muito a investigação. Essa é uma das coisas que eu observo, mas tem que ser feito rapidamente.

Amazônia Real – O que está se perdendo com a morosidade na investigação?

Sydney Possuelo – Nós estamos perdendo tudo. Essa morosidade me lembra o início das investigações de um massacre contra os índios Korubo há muitos anos [em 1986] dentro da Terra Indígena Vale do Javari, na confluência dos rios Ituí e Itaquaí. Naquele massacre, a Funai e a Polícia Federal retiraram os corpos dos índios de dentro do rio Itaquaí. Foram indiciadas umas 18 a 20 pessoas.  O que aconteceu até hoje? Absolutamente nada. Ficou tudo na impunidade. Os culpados não eram políticos, não eram gente cheia de dinheiro que consegue abafar, que compram autoridades. Eram ribeirinhos, gente simples. Até hoje não foi feito nada desse massacre. Foi uma impunidade total.

Nós temos imagens da retirada dos corpos. Ora, retirando-se os corpos junto com médicos legistas e Polícia Federal, não fizeram nada, imagina uma situação como essa em que se passaram três meses do suposto massacre dos Djapá e um mês desse outro ataque aos Flecheiros. É um desinteresse total.

 

Amazônia Real – Mas uma investigação imediata necessita que a base da Frente Etnoambiental Vale do Javari da Funai na região esteja funcionado, mas está fechada desde 2014.

Sydney Possuelo – É por isso que eu digo, tem que iniciar uma investigação imediatamente, é imediatamente. A Frente Etnoambiental Vale do Javari é quem deveria ter feito isso. Não faz por quê? Porque não tem rádio de comunicação, não tem transporte, não tem combustível, não tem canoa, não tem nada! Tá totalmente desabastecida.

Agora, isso fica claro que há um descaso muito grande, o Estado não liga para índios. Nunca deu importância aos povos indígenas. E é isso que está acontecendo a toda hora.

Operação no rio Jandiatuba, no Vale do Javari, encontrou o garimpo ilegal de ouro (Foto: Ibama)

 

Amazônia Real – A Coordenação de Índios Isolados alega falta de recursos.

Sydney Possuelo – Mas num caso como esse é preciso que retirem dinheiro de qualquer lugar. A lei permite isso. Esse negócio de falta de dinheiro… Tira o dinheiro das viagens aéreas e diárias do presidente, diretores e demais funcionários da Funai. Isso é uma emergência. Antes, nós tínhamos no Vale do Javari uma logística que funcionava com as bases da Funai e as bases da Polícia Federal. Nós tínhamos rádio de comunicação para todas as bases. Primeiro, tem que ter comunicação. Segundo, transporte, barcos com motores velozes e rápidos para utilizar nas emergências; nós tínhamos essas coisas. E agora?

 

Amazônia Real – A Frente é subordinada à Coordenação, que tem a chefe, Leila Sotto-Maior, ameaçada de demissão como consta em carta publicada pelos servidores nas redes sociais.

Sydney Possuelo – Esse é um problema menor. Branco para ser demitido da Funai não é um problema para ser tratado agora, sabe. Eu até estranhei essa carta que os funcionários fizerem. Parece uma coisa meio corporativa, estão se defendendo de possíveis demissões. Não é o momento de tratar isso, de manter um DAS [cargo de Direção de Assessoramento Superior do Executivo], tirar um DAS, isso é terciário, secundário. O momento agora é simplesmente de investigar e fazer o que tem que ser feito para fazer justiça. Eles nem deveriam ter tocado nessa coisa, fica até desagradável.

Amazônia Real – Como é investigar uma denúncia como essa se os índios não têm contato nem com o pessoal da Funai?

Sydney Possuelo – Aí é que está a coisa e as pessoas precisam entender. Uma investigação sobre morte de índios isolados não significa ter que fazer um contato com eles. Investiga-se quem fez o ataque. E vai atrás dessas pessoas, prende essas pessoas para recompor o que se passou. Não precisa ir até os índios. Se aconteceu um negócio desses [com os Flecheiros], com certeza eles não estão dentro das malocas, estão espalhados no meio da selva. Então tem que ser investigado junto aos brancos, possíveis assassinos. Como os informantes sabem disso? Quem falou isso? Tem que ir atrás de cada um que relatou isso [à Funai]. Tem que saber se há verdade nisso.

Se houver verdade, aí sim se faz a expedição. Vai-se ao local [onde teria acontecido] para verificar alguma coisa. Mas não precisa passar tempo demais. O tempo passa e o cadáver no meio da selva é rapidamente desfeito por animais, por tantas bactérias, o calor, a umidade, tudo favorece. Então a investigação têm que ser rápida e com velocidade. É impressionante que uma denúncia desse tamanho demore tanto para ser investigada.

Possuelo durante a expedição que avistou índios Flecheiros em 2002 (Foto cedida por Scott Wallace à Amazônia Real)

Amazônia Real – Quem são os índios Flecheiros?

Sydney Possuelo – A última expedição que eu fiz, em 2002, foi exatamente por causa dos Flecheiros. Eu peguei duas equipes de brancos [garimpeiros] descendo o rio Itaquaí. Pensei logo: eles passaram na área dos índios isolados Flecheiros. Será que houve confronto com os índios? Você não sabe o que acontece nessa situação.

E não adianta sobrevoar de helicóptero. É preciso caminhar na selva. É caminhando que você sabe das coisas. Então, nessa expedição de 110 dias, nós avistamos os Flecheiros de longe e eles nos viram. Naquele oportunidade não vimos na mata nenhum sinal de proximidade de brancos e de violência contra os Flecheiros.

 

Amazônia Real – Por que o nome Flecheiros?

Sydney Possuelo – Esse nome parece ser a contraposição dos Korubo, que usam bordunas [cacetes de madeira] e não flechas. Os Flecheiros, nós vimos quatro índios, tinham a pele morena e cabelos longos. Foi tudo rapidamente, foi em segundos. Dois mergulharam no rio e os outros dois correram por terra. Os Flecheiros são povos isolados, não se sabe a sua língua. Não se sabe a sua história, não se sabe nada sobre eles. Eu passei 42 anos trabalhando para os índios isolados e aprendi que eles são sempre uma surpresa.

 

Amazônia Real – Quem são os outros índios isolados que vivem no rio Jandiatuba?

Sydney Possuelo – Ali é uma região de povos isolados. As malocas que nós passamos mais ou menos próximos, não sabemos se são de Flecheiros ou de outros povos. A área é muito grande. Ali tem três etnias: os isolados Djapá e os Korubo. Os Flecheiros estão bem distante dos Korubo. Não se sabe se eles têm relações. É bem possível que em algum momento pode ser que tenham se encontrado nos deslocamentos, mas não se tem certeza de nada.

Amazônia Real – E se ao final das investigações, a Polícia Federal concluir que não houve o massacre?

Sydney Possuelo – De certa forma esses alarmes têm um lado positivo, que é o de alertar as autoridades de que ainda os massacres são possíveis. A nossa história está cheia disso. A nossa história está repleta de ataques contra os povos indígenas.

Expedição no Vale do Javari chefiada por Sydney Possuelo em 2001 (Foto: Flávio Florido/Folhapress)

*A expedição do sertanista Sydney Possuelo ao Alto Rio Jandiatuba, entre os meses de junho a setembro de 2002, foi registrada pelo jornalista Leonêncio Nossa, do jornal “O Estado de S. Paulo”, e pelo fotojornalista norte-americano Scott Wallace, e fotográfico francês Nicolas Reynard (1959-2004), ambos da National Geographic”. Em 2007, Leonêncio lançou o livro “Homens Invisíveis” relatando como foi a expedição ao Vale do Javari com Possuelo e uma equipe de 35 homens, entre eles, índios Matís, Marubo e Mayoruna. Em 2013, Scott publicou o livro Além da Conquista: Sydney Possuelo e a luta para salvar os últimos povos isolados da Amazônia.”

*Entre os meses de março a maio de 2001, Possuelo também fez uma expedição ao Vale do Javari na qual esteve nas aldeias de índios Kanamari e Tsohom Djapá. Na ocasião, o jornalista Thomas Traumann e o repórter-fotográfico Flávio Florido participaram da viagem pela “Folha de S. Paulo”.

*A Terra Indígena Vale do Javari fica ao sul do Rio Solimões, na fronteira do Amazônia brasileira com o Peru. Os rios que cortam o território de 8,5 milhões de hectares são Javari, Curuçá, Ituí, Itaquaí (ou Itacoaí) e Quixito, além dos altos cursos como Jutaí e Jandiatuba, compreendendo terras dos municípios de Atalaia do Norte, Benjamin Constant, São Paulo de Olivença e Jutaí. É a terceira maior área indígena do Brasil, tendo uma população de mais de 5 mil pessoas das etnias contatadas Marubo, Mayoruna, Matís, Kanamari e Kulina. Há também os índios de recente contato, Tsohom Djapá e Korubo, e mais de 15 registros de indígenas isolados (entre eles os Flecheiros) – é a maior concentração de povos desconhecidos do mundo. Além da falta de fiscalização e proteção devido ao sucateamento das bases da Funai, as populações indígenas do Vale do Javari sofrem com a alta prevalência de doençascomo hepatites virais (A, B, C e D), filariose, malária e tuberculose.

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Fotos: Expedição no rio Jutaí em 2002/Foto cedida por Scott Wallace à Amazônia Real

FONTE: http://amazoniareal.com.br/vale-do-javari-possuelo-diz-que-investigacao-de-ataque-indios-tem-que-ser-imediata-nao-pode-esperar-um-mes-dois-meses-trata-se-de-vidas-humanas/