Por Paulo Fonteles Filho.

Meu primo João sofreu terrível preconceito dentro de uma sala de aula do curso de Design, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), por ter a cabeleira estilosa, negramente florida, expressão da raça e do que aprendeu em casa, além de sua própria vontade.

O pequeno é black power desde tenra idade. E, em meio à ditadura capilar do alisamento – imposta pelos grandes aparatos que moldam a consciência social nos trópicos e o fetiche da beleza – o moleque sempre resistiu aos apelos do branqueamento.  Aqui, a nossa pretice, entre malungos, é sempre um ato de convicção.

Tudo aconteceu numa aula de criatividade.

A professora, neófita, usou as madeixas do ébano de vinte anos para repercutir os navios negreiros e ela mesma permitiu que os grilhões do censo comum prosperassem numa catarse de estupidez que não cabe à universidade que é, afinal, a melhor dimensão do Brasil.

A pessoa que deveria educar, deseducou.

Uma lástima para quem se espera que no universo acadêmico – da inteligência e conhecimentos, entre mestrados e doutoramentos, mestiçados na grã sabedoria ocidentais – a consciência sempre haverá de enfrentar e superar o desatino da escuridão e o obscurantismo que grassa em dias tão estranhos.

Muito de nossa inventividade e da rica cultura brasileira surge da resistência negra e indígena e da necessidade de enfrentar os escravocratas, buscando a felicidade moribunda.

Daí emerge a compreensão de que era preciso dominar o idioma do açoite, legítima engenhosidade capaz de conspirar contra os mercadores do medo e inaugurar a quilombagem, espaço de nossa libertária ancestralidade. O povo brasileiro é herdeiro dessa tradição rebelde.

Mas no país tupiniquim a questão racial é estruturante. Em mais de quinhentos anos de história toda a riqueza produzida – amealhada por tão poucos até hoje – é resultado da chibata e do subproduto ideológico de que também a beleza é uma virtude das elites, impondo um mimetismo cultural que precisa de grande reflexão nesses tempos de ascensão da extrema-direita bolsonazi e MBL.

Meu primo João desde sempre foi black power, não lembro dele sem a vasta cabeleira, coisa que sempre me pareceu singular e que confere ao jovem uma valentia pessoal, a vontade própria resoluta e uma autoestima que sugere que nem todos irão fenecer de solidão.

O João é lindo e corajoso.

Poderia ter ficado no canto solene das aceitações secretas, ajoelhado no milho, humilhado pelo escárnio, refém da graciosidade do preconceito que brutaliza, mas não, reagiu.

Reagiu porque é filho de pai e mãe, saiu das entranhas do Ronaldo e da Dora, neto da Lalá, bisneto da Cordolina, gênio da raça entre os Maués, gente culta e numerosa, que têm os umbigos consagrados em Abaetetuba, terra amazônica da cachaça e dos que não levam desaforo pra casa.

Só sei que o pai do João me levou às primeiras reuniões do Partido Comunista, que o tio do João, José Marcos, me fez escrever cartas ao Araguaia defendendo os perseguidos pelo major Curió e que outo tio do João, Luiz Romano, me deu o Abbey Road dos Beatles, meu primeiro disco.

João é sempre povo, também tenho um irmão chamado João.

Primo, segura a barra e segue, tal episódio desvenda a sordidez da Casa Grande e o resoluto caminho de que emancipação social e racial é imprescindível, tarefa urgente desta civilização dos trópicos.

Nunca estarás sozinho.

#SomosTodosBlackPower

FONTE: http://paulofontelesfilho.blogspot.com.br/2017/10/meu-primo-joao.html?view=classic