por Maria Fernanda Ribeiro, especial para a Amazônia Real

O corpo da líder quilombola Maria Trindade da Silva Costa, de 68 anos, foi encontrado pelo filho em um ramal da zona rural da cidade de Moju, no nordeste do estado do Pará, um dia após ter sido assassinada, em junho desse ano. Um suspeito foi preso e alegou que matou sem motivos. Para a comunidade, porém, Maria Trindade foi vítima devido à sua atuação como liderança.

Esse é apenas o exemplo de um caso de violência contra a mulher do campo no Pará, que já fez 16 vítimas em 2017, sendo duas quilombolas. É nesse cenário que atua a coordenação Estadual das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará, a Malungu, com o objetivo de empoderar as mulheres negras mesmo diante da escalada da violência que as assombra.

“A gente vive com medo porque temos um histórico muito grande de violência contra a mulher do campo no Pará. E uma mulher empoderada é conhecedora dos seus direitos, que não tem medo de falar, não tem medo de denunciar, que vai em busca”, afirma Valéria Carneiro, 37 anos, coordenadora da Igualdade de Gênero da Malungu, que na língua africana Iorubá significa companheiro.

A Malungu existe juridicamente desde 2004 e surgiu a partir da necessidade de as comunidades quilombolas, que já se articulavam em seus municípios, tivessem uma representação estadual. O Pará conta atualmente com 420 comunidades, mas apenas 120 são tituladas, segundo dados da coordenação. Dessas, 350 são associadas à Malungu, cujo número de famílias que integram cada uma varia muito. Há as menores, com 15 grupos, e outras de até 600, o que torna inviável calcular a quantidade de pessoas impactadas pelo trabalho.

Segundo Erica Monteiro, 34 anos, coordenadora executiva, desde 2012 a Malungu tem atuado com mais intensidade junto às comunidades quilombolas para acompanhar os grupos de mulheres e ampliar a participação delas, alçando suas vozes e ouvindo os problemas. “Com o tempo passamos a ter um outro olhar para esses movimentos. A violência contra a mulher tem aumentado bastante, principalmente aqui no nosso estado, e passamos a dar mais atenção para isso.”

A reportagem da Amazônia Real conversou com a Valéria e com a Erica na sede da coordenação, em Belém, para conhecer mais sobre o trabalho desenvolvido em prol das mulheres quilombolas do Pará, as principais dificuldades enfrentadas e o que esperar para o futuro.  Confira os principais trechos da entrevista.

8º. Encontro de Mulheres Quilombolas (Foto: Malungu)

Amazônia Real – Qual a principal bandeira de luta da Malungu?

Erica Monteiro – Das 420 comunidades quilombolas no Pará, apenas 108 são tituladas. Por aí você já vê a necessidade de ter uma organização que as represente, e um dos nossos principais objetivos é a regularização fundiária para que possamos ter acesso às políticas públicas. Tivemos alguns avanços no governo Lula e no primeiro mandato da Dilma, mas agora temos um governo que tenta o tempo todo nos desmobilizar.

Amazônia Real – Como é o trabalho da coordenação pela Igualdade de gêneros?

Erica Monteiro – Sempre houve na nossa estrutura essa coordenação, mas somente a partir de 2012 conseguimos verba para ter uma pessoa atuando diretamente nessa área, para desenvolver os trabalhos nas bases. Isso foi possível porque a Fundação Ford, que já era nosso parceiro desde 2010, percebeu a necessidade de que houvesse um trabalho mais específico voltado para as mulheres, e solicitou que uma parte do orçamento fosse assim direcionada. De 2012 para cá, estamos fazendo um trabalho muito atuante junto às comunidades quilombolas de acompanhamento do grupo de mulheres. Aqui no Pará temos muitos grupos, mas muitos se perdem por dificuldades das mais variadas. Mas estamos agora monitorando mais de perto, entendendo melhor os obstáculos e já conseguimos ter uma relação efetiva com eles.

Valéria Carneiro – Nosso principal objetivo é proporcionar às mulheres informações para que tenham conhecimento dos seus direitos. Para que possam se mobilizar e lutar por eles. Através dos encontros que participávamos percebemos que as mulheres já eram linhas de frente de várias associações, mas era necessário que elas se empoderassem mais. A gente vive com medo porque temos um histórico muito grande de violência contra a mulher do campo no Pará. Só este ano já foram 16 mortes, sendo dois casos de mulheres quilombolas que eram lideranças. Uma delas foi a senhora Maria Trindade, da comunidade do Moju. Ela vinha no caminho da roça e simplesmente desapareceu. Depois encontraram o corpo dela. A polícia avalia como crime passional, mas o movimento não aceita isso por se tratar de uma mulher que atuava na linha de frente.

8º Encontro de Mulheres Quilombolas (Foto: Malungu)

Amazônia Real – Como, então, trabalhar com essa mulher se ela está amedrontada?

Valéria Carneiro – A Marcha Nacional das Mulheres Negras, em 2015, foi o pontapé inicial para muitas mulheres para que elas pudessem se abrir. Isso porque elas perceberam que há muitas como elas e muitas se libertaram a partir do movimento. Precisamos de mulheres quilombolas conhecedoras dos seus direitos, que não tenham medo de falar e denunciar.

Amazônia Real – E o machismo?

Valéria Carneiro – Enfrentamos muito machismo. Hoje a gente já consegue chegar a uma comunidade e fazer uma discussão de igualdade de gênero e ver homens falando a favor disso, mas ainda é em poucas comunidades. Num evento de 30 mulheres, tem dois ou três homens. E eles são convidados igualmente. E geralmente esse homem é o presidente da associação e a pessoa que o assessora. Nunca é o marido, ou o irmão ou o namorado de uma mulher. E tem parceiro que diz que se a mulher for para o encontro vai ficar solteira. Mas elas vão mesmo assim.

Erica Monteiro – Temos casos de mulheres submissas ao marido e que eles pedem para escolher o estudo ou eles, e em muitos dos casos elas optam pelos estudos. Minha irmã aconteceu isso porque o marido achava que ela não estava cuidando direito da casa. Mas ela continuou estudando e foi embora com o filho pequeno. E há muitos casos assim como o dela.

Amazônia Real – Quais as principais dificuldades que vocês enfrentam na Malungu?

Valéria Carneiro – Além da dificuldade financeira, conseguir ouvir as mulheres porque há muitas que se fecham. Mês passado estive em uma comunidade para fazer uma mobilização para o encontro e ouvir a comunidade. E por mais que as mulheres participem, ainda temos muita dificuldade de ouví-las quando se trata principalmente de violência contra a mulher. Quando é para falar sobre projetos para a comunidade elas se abrem mais. Um outro assunto que também há bastante interesse é sobre a reserva de vagas para quilombolas na Universidade Federal do Pará.

Erica Monteiro – A reserva de vagas foi uma luta do movimento social e que em 2013 conseguimos acessar esse edital. E quem preenche 70% dessas vagas são as mulheres. Da minha comunidade já somos perto de 20, e só tem um homem. Só na minha casa são quatro mulheres e todas fazem faculdade. Pedagogia é o curso mais procurado porque existe a chance de conseguir um trabalho na própria comunidade. Isso quando nessa comunidade tem escola.

Érica Monteiro, da Mulungu (Foto: Maria Fernanda Ribeiro/Amazônia Real)

Amazônia Real – O que é ser mulher, negra e quilombola no Brasil?

Valéria Carneiro – A gente tem um histórico de dificuldades. Todas as nossas grandes mulheres, que hoje estão nas paredes dos museus, sofreram para serem reconhecidas, e isso só aconteceu depois de anos que elas já estavam mortas. Eu me sinto um grãozinho. Hoje estamos dentro de uma organização conhecida nacionalmente e mesmo assim é difícil. Imagina quem está na base, nas comunidades.

Erica Monteiro –  A sociedade tem uma visão da mulher negra muito difícil. E quando se trata da quilombola piora. A gente sai na rua e a abordagem das pessoas é com perguntas como: você trabalha com faxina? Essa é a nossa realidade. O que é preciso fazer para que as pessoas deixem de achar que somos faxineiras, cozinheiras, empregadas? Por que não pode ser uma branca também?

Valéria Carneiro, da Malungu (Foto: Maria Fernanda Ribeiro/Amazônia Real)

Amazônia Real – Como enfrentar o racismo?

Valéria Carneiro – Isso acontece porque as pessoas têm um pensamento racista e a maioria das pessoas que recebe essa abordagem não tem conhecimento, não sabem identificar se é racismo e muitas vezes não fazem nada, não sabem como reagir. Há muitos negros que não sabem identificar, não sabem onde denunciar. E o nosso papel como coordenador e articulador é o de passar essas informações, para que elas saibam se defender. Essa questão do racismo no Brasil é forte. E quando se trata do racismo contra a mulher é pior porque envolve o machismo. Sofremos dos dois lados.

Amazônia Real – Qual o legado que vocês querem deixar para as mulheres quilombolas?

Valéria Carneiro – Queremos ver essas mulheres falando sem medo. Conseguir vê-las organizadas, ter associações ativas. Isso é muito importante. Queremos mulheres envolvidas também nas políticas partidárias porque é dentro dessa espaço que os projetos se desenvolvem.

Maria Fernanda Ribeiro  é jornalista, nascida em Bauru (SP), tendo trabalhado em redações de jornais, sites e revistas. Formada pela Universidade Metodista de Piracicaba, ela trabalha entre São Paulo e a Amazônia. Conhecer essa região única do mundo a partir de 2016 a fez entrevistar e compartilhar as histórias dos povos tradicionais que nela vivem. Viajou pelos estados do Acre, Amazonas, Rondônia, Roraima e Pará, onde conheceu aldeias indígenas, comunidades ribeirinhas e quilombolas. Os textos produzidos durante essa jornada foram publicados no blog Eu na Floresta, do jornal “O Estado de S. Paulo”.

Foto: Maria Fernanda Ribeiro/Amazônia Real

FONTE: http://amazoniareal.com.br/mulheres-quilombolas-falam-sobre-violencia-e-busca-por-direitos-no-para/