Por Paulo Fonteles Filho.

“Um velho Timbira, coberto de glória, 
Guardou a memória 
Do moço guerreiro, do velho Tupi! 
E à noite, nas tabas, se alguém duvidava 
Do que ele contava, 
Dizia prudente: – “Meninos, eu vi!”
(Gonçalves Dias)

Em meio aos tempos tenebrosos de golpe, de ameaças de quartelada, de ascensão fascista apoiada pela mídia empresarial, pelas cruzadas fundamentalistas dos talibãs tupiniquins, do lavajatismo que estiolou o Estado Democrático de Direito é que faço a presente publicação, meu depoimento à Comissão da Verdade “Rubens Paiva” de São Paulo – então presidida pelo deputado estadual Adriano Diogo (PT) – no curso do Seminário Infância Roubada, cujo espaço foi fundamental para a ampliação do conhecimento dos crimes cometidos pela Ditadura Militar (1964-1985) contra a infância brasileira.

Mas o depoimento, de 2013, só pode ser dado porque tenho mergulhado durante todos esses anos em histórias duras, que não podem ser esquecidas sob a ameça de repetição. A pós-verdade, trincheira metralhante dos corvos e canalhas, precisa ser desmascarada.

As histórias da repressão – e sua vivência – entraram dentro das minhas percepções desde muito cedo, na tenra infância, numa família de perseguidos políticos, de laços comprometidos profundamente com a verdade e a luta libertária do povo brasileiro, hoje em radical desconstrução.
Desculpa se incomodo, mas só posso respirar se falar disso, porque esse testemunho também é a rebeldia da carne violada que tomou a consciência de si num ambiente turbulento, é verdade, mas também numa relação com pais amorosos, com os discos dos Beatles, Chico Bruarque, Paulo André e Ruy Barata e Gilberto Gil, além de uma imensa biblioteca e as aventuras de Marco Polo e meninos grapiúnas.
Paulo e Hecilda, como torturados, denunciando o entreguismo do regime dos generais, defendendo trabalhadores rurais ou incentivando a organização dos trabalhadores urbanos, mesmo com todos os desencontros, de amantes que não tiveram tempo, sempre nos transmitiram valores de que era preciso construir tempos de democracia e liberdade. Realmente, nunca os vi detratando uma pessoa modesta, ao contrário, eram seus defensores e entusiastas.
Recolhi deles o ódio pró-ativo aos fascistas. A culpa dos que nos geraram foi nos dar as janelas para a reflexão, daí virar comunista era questão de tempo, tragédias de morte e solidariedade humana.
Júlio Verne encontrou-se comigo no Araguaia, eu tinha 7 anos. Ronaldo andava com “Realce”, do Gil e estava trocando os dentes aos 6 anos enquanto que a Juliana não passava de um bebê. Isso foi em 1979.
Quando meu pai fora morto, em 1987, eu tinha 15 anos e entrei pro Partido Comunista. Minha primeira tarefa foi convocar meus colegas do NPI – escola de aplicação da Universidade Federal do Pará – para os funerais que encharcaram Belém de revolta cujo o povo, devotado ao martírio do advogado de posseiros do sul do Pará, ousava os panos vermelhos nas janelas das casas e apartamentos numa tarde terrível e inacreditavelmente triste.
Talvez nem saibam aqueles amigos, mas eles me salvaram a vida. Na tarde daquelas retinas revoltosas a solidariedade cuspia o fogo dos segredos da terra, como fazem os vulcões.
A tragédia pousou em minha alma junto com a solidariedade – que adentrou pelos flancos daquele jovem do final da década de 1980 – e desde então vivo o dilema dialético desse drama atroz e sonho humano inarredável.
Desde então passei a ir ao Araguaia, precisava saber do advogado-do-mato, defender essa memória, não deixar que morresse, num contexto dos assassinatos de queridos irmãos da igualdade, como os Canuto e Expedito Ribeiro de Souza, poeta negro e presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria.
Nessa época conheci Elza Monnerat, construtora da saga guerrilheira, eterna inspiração.
Em 1996 – fazem 21 anos – fui ao Araguaia numa viagem definitiva, sob os auspícios do velho João Amazonas e da Elza. Sem saber, aqueles mestres da resistência me salvaram a vida pela segunda vez.
Quando voltei à “civilização” um ano depois – eu estudava Filosofia na UERJ – estava doze quilos mais magro, com leishmaniose, quatro fotografias de guerrilheiros desaparecidos sob custódia do Exército recolhidas na cova dos leões, um amigo chamado Sinvaldo Gomes, um sorriso de ponta à ponta porque havia descoberto de que os camponeses são as pessoas mais gentis e corajosas que conheço.
Meu pai, assassinado pelo latifúndio, estava então diante de mim e a forma que ele se transmitia era através dos olhos e das histórias dos posseiros, além dos cordéis das trincheiras em que o povo se arma, legitimamente, pra se defender da morte mediante paga e das botas do tirano.

É nesse contexto que dialogamos, para mim nunca estará morto.

Tenho compromisso com essa memória, compromisso em ser um homem feliz, bom pai, irmão dos meus irmãos, filho amoroso, amante fiel ao amor, amigo dos meus amigos e uma espinha na garganta dos apologistas da ditadura.

Foda-se, tenho muitos medos e o principal deles é ficar debaixo da cama com cagaço mental, esperando o tempo ruim passar. O tempo ruim vai passar se falarmos às camadas mais profundas da consciência social.

Não acumulei riqueza material: só histórias, ameaças de morte, um pulmão meio fodido e um bornal cheio de coisas à fazer.
Histórias que são partilhadas – com pessoas de confiança  como o Sezostrys Alves da Costa, o João de Deus, a dona Oneide Costa Lima e dona Neuza Lins, com o Márcio Holanda, o Marcelo Zelic e os Aikewara, Angelina Anjos, a advogada Ana Maria Baía Oliveira, com o Evandro Medeiros, a Gabi Cunha, com o Eduardo Reina, Paulo Roberto Ferreira, Egidinho Sales, Marco Apolo, Rafaella Pennain, Erik Rocha, Paulo Emmanuel, Rubens Pereira e Moisés Alves- e que precisamos contá-las, em defesa da memória nacional contra o fascismo que grassa na atualidade.
Não, não creio que o caminho seja o niilismo.
Desculpa se incomodo, mas não vou parar.

“Filho dessa raça não deve nascer”: http://paulofontelesfilho.blogspot.com.br/2014/11/depoimento-de-paulo-fonteles-filho_3.html

Integra do depoimento sobre a complexidade da luta para localizar os desaparecidos políticos da guerrilha do Araguaia: https://www.youtube.com/watch?v=WFsbv0bzMuw

Imagem Araguaiana: http://paulofontelesfilho.blogspot.com.br/2016/06/araguaia-20-anos-de-luta-pela-verdade.html?q=Imagem+Araguaiana

Onde está Daniel Callado?: http://paulofontelesfilho.blogspot.com.br/2014/11/onde-esta-daniel-callado.html?q=Imagem+Araguaiana

Onde está Antônio de  Pádua Costa?:  http://paulofontelesfilho.blogspot.com.br/2015/02/onde-esta-antonio-de-padua-costa.html?q=Imagem+Araguaiana

Onde está Uirassu Assis Batista?: http://paulofontelesfilho.blogspot.com.br/2014/11/onde-esta-uirassu-de-assis-batista.html?q=Imagem+Araguaiana

Latifúndio e Impunidade, o vil legado da ditadura na Amazônia: http://paulofontelesfilho.blogspot.com.br/2015/03/latifundio-e-impunidade-o-vil-legado-da.html?q=latif%C3%BAndio

Mãe, não consigo dormir: http://paulofontelesfilho.blogspot.com.br/2017/01/mae-nao-consigo-dormir.html?q=Carta+para+minha+m%C3%A3e

Carta ao meu pai: http://paulofontelesfilho.blogspot.com.br/2012/08/carta-ao-meu-pai.html?q=Carta+para+minha+m%C3%A3e

Expedito e outras poéticas, os versos contra o latifúndio: http://paulofontelesfilho.blogspot.com.br/2014/10/expedito-e-outras-poeticas-os-versos.html?q=Carta+para+minha+m%C3%A3e

João Canuto de Oliveira: “Morro, mas fica a semente” – http://paulofontelesfilho.blogspot.com.br/2015/12/joao-canuto-de-oliveira-morro-mas-fica.html?q=Carta+para+minha+m%C3%A3e

A Guerra dos Perdidos, o advogado-do-mato e a caravana de 1980: http://paulofontelesfilho.blogspot.com.br/2014/01/a-guerra-dos-perdidos-o-advogado-do.html?q=Carta+para+minha+m%C3%A3e

Carta ao general Antônio Mourão: http://paulofontelesfilho.blogspot.com.br/2017/09/carta-aberta-ao-general-antonio-mourao.html?q=Carta+para+minha+m%C3%A3e

Mais uma vez nos Martírios: http://paulofontelesfilho.blogspot.com.br/2014/10/mais-uma-vez-nos-martirios.html?q=mart%C3%ADrios

FONTE: http://paulofontelesfilho.blogspot.com/2017/10/a-memoria-versus-o-niilismo-como.html