“O direito e a constituição estão sendo claramente agredidos”, disse o professor emérito da USP Dalmo Dallari, um dos mais renomados juristas brasileiros e autor de diversas doutrinas, entre as quais, Elementos de Teoria Geral do Estado, que é uma obra obrigatória de leitura dos estudantes de Direito no Brasil.

“A Constituição é expressão da vontade livre e democrática do povo brasileiro. É um instrumento que o Brasil criou para dar efetividade aos direitos fundamentais proclamados, consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos”, enfatizou.

Resultado de uma luta do povo brasileiro, que participou ativamente de todo o processo de construção, a Carta Magna instituiu em seu preâmbulo a fundação da República Federativa do Brasil sob os auspícios de “um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”.

Cada ponto citado nesse preâmbulo, que define os princípios basilares da nossa República, está sob ataque das forças conservadoras, gerando insegurança jurídica e a mais grave crise institucional dos últimos tempos.

Mas essa ameaça não nasceu num passe de mágica. Encontra raízes na formação e construção do Estado brasileiro. A promulgação da Constituição, sem dúvida, provocou mudanças que alteraram a estrutura da nossa sociedade, gerando também um incômodo com a presença das classe mais pobres e setores antes dominados pela elite.

Em entrevista ao Portal Vermelho, Dallari contou que ao longo de sua trajetória, primeiro como estudantes e depois como professor no curso de Direito, viveu momentos distintos, que demonstraram como isso aconteceu.

“Eu, neto de imigrantes italianos, vindo de uma pequena cidade chamada Serra Negra, fui o primeiro da família a ter um título universitário. Durante a convivência na faculdade, eu sentia uma diferenciação”, afirma Dallari. Ele destaca que o fato de pertencer a uma camada mais pobre, tendo que trabalhar desde os 14 anos, como office boy para sobrevir, sofreu discriminação ao ingressar na mais importante universidade da América Latina, a Universidade de São Paulo.

“Na faculdade, quando eu entrei em 1953, a grande maioria era de pessoas das camadas mais ricas da sociedade. Era o começo do comparecimento de estudantes da classe média e não havia nenhuma cogitação para estudantes das classes mais pobres [ingressassem na USP]”, relata Dallari, que disse perceber o mesmo comportamento por parte de professores e diretores que, em sua maioria, também eram de famílias tradicionais.

Constituição era perfumaria

Nesse período, Dallari identificava um desprezo pelas garantias constitucionais por parte dessa elite que formava o pensamento acadêmico na universidade.

“Havia um grande desprezo pelo direito constitucional. Eu me lembro bem de um desses professores tradicionalíssimos na área de direto comercial que dizia em alta voz aos alunos em sala de aula: ‘Não percam tempo com o Direito Constitucional porque Constituição é perfumaria jurídica’”, lembrou o jurista, destacando que o renomado professor tratava o direito patrimonial e de empresa como a legislação que deveria reger o Estado e assegurar a justiça entre os cidadãos. “Isso foi sendo ultrapassado e superado”, disse ele.

Dallari conta ainda que ao se tornar professor da Faculdade de Direito da USP, em 1973, a convivência com os professores também era demarcada pelo pensamento elitista e segregador.

“Na convivência com esses professores tradicionais eu já percebia uma forte discriminação. Era chamado ostensivamente de ‘italianinho’ pelos professores. Era um corpo estranho naquele ambiente de pessoas tão tradicionais”, declarou.

Foi a partir da Constituição de 1988 que Dallari começou a perceber mudanças significativas no perfil dos professores, mas principalmente dos alunos.

“A partir da Constituição de 1988, que foi extremamente importante por acolher tantos os direitos civis e políticos quanto os direitos econômicos, sociais e culturais, apesar da resistência, que foram promovidas mudanças”, destacou.

E acrescenta: “A Constituinte, pressionada por uma forte participação popular, acabou acolhendo essas garantias. Havia, porém, a necessidade de dar efetividade. O governo Lula foi extremamente importante, pois tomou iniciativas para dar efetividade a esses direitos sociais. Uma delas foi a instituição de bolsas, financiamentos dando apoio aos estudantes das camadas mais pobres. Eu então comecei a ter alunos que eram originários dessas camadas. Houve toda essa trajetória da escola aristocrática, discriminadora, para aquela que acabou acolhendo as camadas mais modestas da população”, salientou o professor.

Para ele, tais conquistas foram de suma importância para o desenvolvimento do país e devem ser preservadas.

“Existe no Brasil hoje uma resistência muito forte aos direitos sociais e uma tentativa de influenciar as atividades jurídicas, inclusive os tribunais, para que não deem efetividade aos direitos sociais. Entretanto, isso já faz parte da nova sociedade brasileira, com participação efetivas das camadas mais modestas”, reforça Dallari.

De acordo com o jurista, o pais chegou a um patamar avançado, mas diante dos rumos do país, “é absolutamente necessário que os advogados resistam com toda a firmeza para que prevaleça os valores fundamentais da justiça e do direito”.

Do Portal Vermelho