O ambiente em que o país mergulhou a partir de 2014 é refratário ao respeito aos direitos humanos – cada vez mais ridicularizados e ignorados por setores que perderam o pudor em se apresentar publicamente – e refratário à própria democracia. O objetivo de abreviar, mesmo que por intermédio de um golpe, o governo democraticamente eleito em 2014, aprofundou a polarização da vida política do país, amplificou o discurso do ódio e, consequentemente, a intolerância e a criminalização da política e dos movimentos sociais.

Isso é fato. A questão que se coloca é: O que os setores que defendem a democracia e os direitos humanos devem fazer diante deste cenário? Como agir para enfrentar o ódio insuflado pelos meios de comunicação de massa e que ganham aderência nas redes sociais? Como lidar com essas questões na internet?

Esse não é um assunto trivial e tem sido alvo de reflexões em vários países. Como combater ódio, racismo, machismo, homofobia e outras manifestações que ferem a dignidade humana no ambiente “online”. Se pensarmos que essas violações aos direitos humanos na internet nada mais são do que o reflexo e a manifestação de uma crescente onda de intolerância que toma conta de nossa sociedade, fica a pergunta: Cabem regras distintas para o mundo online e offline? Se sim, quais e com que caráter?

Essas são questões que merecem um estudo vigoroso, com base em evidências e dados que permitam compreender os melhores caminhos para serem enfrentadas com determinação, sempre com o olhar na defesa dos direitos humanos, dos quais faz parte a liberdade de expressão.

Um caminho possível é o de ampliar penas e entrar numa estrada que aposta na criminalização como forma de coibir manifestações de ódio e intolerância.

Aumentar penas pecuniárias e de reclusão para condutas como injúria, calúnia e difamação cometidos na internet faz sentido?

O Brasil já dispõe de leis importantes para combater, por exemplo, o racismo (Lei 7.716/89, alterada pela lei 9.459/97), a violência contra as mulheres (Lei Maria da Penha), para defender a infância e a adolescência (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), para defender os idosos (Estatuto do Idoso), etc. Leis que significaram um avanço para o combate à violação de direitos e à discriminação. Essas lei, já definem penas para os crimes cometidos no mundo “offline”. Algumas delas, já avançaram para, inclusive, ampliar penas no mundo “online”, como a lei 7.716/89.

Mas, é preciso reconhecer, que elas não foram suficientes para evitar a proliferação do ódio, do machismo, do racismo, homofobia e toda sorte de violação de direitos humanos na internet. Isso porque a sociedade, vive, como dito acima, um momento de proliferação dos preconceitos e exacerbação de valores diametralmente opostos com a defesa de direitos humanos.

Neste sentido, seguir numa lógica apenas punitivista para combater crimes na internet só contribui para aumentar a já imensa população carcerária brasileira e a indústria de multas e de indenizações que têm sido amplamente utilizadas, muitas vezes de forma indevida, para calar vozes dissonantes e cercear a liberdade de expressão. E pode ser, além do mais, ineficaz para atingir o objetivo almejado.

Outra forma de tentar coibir o discurso do ódio, calúnia, injúria e difamação na internet pode ser o de determinar regras para excluir, sumariamente, conteúdos da internet que um terceiro defina como ilícitos, ou seja, sem a devida mediação de um órgão público.

Aqui o caminho é o de responsabilizar o intermediário – no caso da internet os provedores de conteúdo e aplicações – caso eles não retirem do ar conteúdos que foram denunciados por alguém, mesmo que tal conteúdo não fira os termos de uso do provedor/plataforma, e mesmo sem que haja uma determinação judicial.

Esse caminho, ao meu ver, traz alto risco para a já esquálida democracia que o país vive e deixa uma cicatriz permanente numa lei que foi construída para tempos democráticos, o Marco Civil da Internet. Abrir caminho para que qualquer notificação extrajudicial obrigue que o provedor retire o conteúdo sob pena dele ser responsabilizado criminalmente, se vingar, vai instalar a lógica da supressão de conteúdos e não a da sua manutenção, que é o que prevê o Marco Civil. Essa medida transfere para um terceiro – geralmente ator econômico, muitas vezes internacional – a responsabilidade de decidir o que é ou não lícito no Brasil.

O Marco Civil da Internet foi uma importante conquista da sociedade brasileira. Nosso país foi um dos primeiros a aprovar uma legislação que estabelece direitos e deveres aos usuários da internet, baseados em princípios fundamentais como a liberdade de expressão, citada em vários artigos distintos do MCI. Sua construção é um paradigma na maneira de elaborar propostas legislativas. Foi construído colaborativamente em todas as suas fases e é expressão de amplo diálogo e produção de “sínteses progressivas”.

Várias polêmicas acompanharam o processo de aprovação da Lei e de definição do seu decreto de regulamentação. Algumas persistem. Uma delas é o dispositivo de notice and take down – notificação e retirada de conteúdos pelos intermediários sempre que houver alguma denúncia.

O dispositivo do MCI que trata deste aspecto é o Artigo 19.  Sua redação já é fruto de um amplo processo de pressão. É um artigo que buscou equilibrar os diferentes pontos de vista. Ele subordina os seus dispositivos à defesa da liberdade de expressão e busca evitar a censura na internet.

“Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”.

Vale esclarecer, da leitura deste artigo que:

a) Em nenhum momento o Marco Civil afirma que a remoção de conteúdos se dá, exclusivamente, por ordem judicial. O provedor pode remover conteúdos que confrontem os termos de uso e políticas da sua plataforma e, também, pode retirar conteúdos que considere ilícitos e violador de direitos.

b) O que o Marco Civil faz é não responsabilizar o provedor por conteúdos de terceiros. Ele só passa a ser responsável se, mediante ordem judicial específica, ele não retirar o conteúdo determinado. Ou seja, passa a ser co-responsável pelo conteúdo ilícito se descumprir uma ordem judicial para retirar determinado conteúdo.

Em última instância, cabe ao Poder Judiciário determinar o que é ilícito ou não. Dizer se um conteúdo é realmente ilícito não é algo tão objetivo como se pode imaginar. O que para alguém pode ser ofensivo (uma crítica, uma análise, uma denúncia), perante o outro e a sociedade pode significar o legítimo exercício da liberdade de expressão. O próprio sistema de Justiça tem parâmetros muitas vezes subjetivos para determinar se uma conduta configura injúria, calúnia e difamação. Imagina para um terceiro.

O Marco Civil da Internet já prevê duas excessões para determinar a retirada de conteúdos sem decisão judicial: as que violem direitos autorais (no §2º do artigo 19); e no artigo 21 quando define a retirada de conteúdos que exibam cenas de nudez e sexo explícito quando não autorizado.

A opção adotada pelos legisladores ao aprovar o MCI foi criar um equilíbrio para evitar que os provedores/aplicativos exerçam para além de suas atribuições (contidas nos seus termos de uso e no que está apontado na lei) o papel de dizer o que é ou não ilícito. Ou seja a remoção é a exceção, não a regra.

Se a priori o provedor fosse co-responsável pelo conteúdo e pudesse ser acionado criminalmente pela sua manutenção sempre que fosse notificado extra-judicialmente para fazer a exclusão, a remoção seria a regra e isso poderia resvalar na censura e na violação à liberdade de expressão.

Desde a aprovação do MCI pipocam projetos de lei na Câmara dos Deputados para imputar responsabilidade ao intermediário e aumentar penas para “crimes cometidos na internet”.

Queria relembrar a tentativa mais recente, amplamente denunciada, de retirar conteúdos da internet sem ordem Judicial: a emenda do deputado Áureo do Solidariedade à Reforma Política. Sobre essa tentativa, que não prosperou devido à forte pressão da sociedade, a Coalização Direitos na Rede afirmou em nota:

“A medida abria um perigoso precedente para a prática da censura e violação à privacidade, justo num momento fundamental de participação política dos cidadãos e cidadãs no futuro do país. Impor aos provedores que retirem conteúdos online por simples notificação, sob fundamentos com alto grau de subjetividade (“disseminação de discurso de ódio, informações falsas, ofensas em desfavor de partido ou candidatos”), antes do controle pelo Poder Judiciário, significa autorizar a censura privada arbitrária, em desrespeito à garantia do princípio do devido processo legal. Como sustentado pelo Supremo Tribunal Federal, “os crimes contra a honra pressupõem que as palavras atribuídas ao agente, além de se revelarem aptas a ofender, tenham sido proferidas exclusiva ou principalmente com esta finalidade, sob pena de criminalizar-se o exercício da crítica, manifestação do direito fundamental à liberdade de expressão” (Pet 5735 / DF, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 11/09/2017). Reconhecer o caráter ofensivo só com base em mera denúncia é censurar a crítica política”.

Então qual a saída?

Essa é a pergunta de 1 milhão de dólares. Precisamos buscar soluções efetivas para combater as violações de direitos humanos no mundo online e offline.

No mundo online, é fundamental consolidar o Marco Civil da Internet e seu artigo 19 como ferramenta que está a serviço da preservação dos direitos humanos, inclusive da liberdade de expressão. Vale sublinhar, para não restar qualquer dúvida, que a liberdade de expressão não é – e nem pode ser – salvaguarda para a violação de outros direitos humanos. Mas sua defesa também não poder ser secundarizada em um momento de aumento dos casos de violação à liberdade de expressão no Brasil.

Medidas educativas incorporadas através de políticas públicas voltadas para combater violações de direitos na internet também são essenciais. Criar mecanismos que obriguem os provedores de aplicação e conteúdo a darem maior transparência às suas políticas e termos de uso, criar efetivamente instrumentos de intermediação entre esses provedores e seus usuários – a maioria deles não possui sequer um departamento de atendimento ao cliente no Brasil –, tornar mais transparentes os critérios para patrocínio de postagens, divulgação de publicidade e de funcionamento de seus algoritmos, que estimulam a bolha do preconceito e do ódio.

Também são importantes campanhas públicas de esclarecimento sobre estes temas, como a iniciativa “Conecte seus direitos” que os parceiros do Intervozes estão desenvolvendo, além de iniciativas voltadas para o próprio Poder Judiciário, no sentido de qualificar cada vez mais a sua ação nos temas envolvendo internet.

Mas, mais do que isso, é preciso verdadeiramente enfrentar o ódio na sociedade “offline”, combater iniciativas que aprofundam a intolerância, como a Escola Sem Partido, a escalada moralista que tenta proibir exibição de exposições, filmes, peças teatrais sob os mais variados pretestos.

Além de muita reflexão para encontrar a resposta mais efetiva e razoável para esta pergunta, é urgente, na verdade, recuperar a possibilidade do diálogo e resgatar a democracia.

FONTE: http://midianinja.org/renatamielli/pergunta-do-milhao-como-combater-a-intolerancia-e-o-preconceito-na-internet/