A discussão sobre o direito de Lula ser candidato às próximas eleições é carregada de sentimentos. Se, por um lado, falamos da privação do direito de uma grande parcela da população que anseia por sua candidatura, é preciso abordar com humildade os anseios do campo opositor. Refiro-me aqui àquela parcela da população que, sinceramente, acredita que a confirmação da condenação do ex-presidente, e sua consequente perda de direitos políticos, trariam benefícios contra a corrupção e a sensação de impunidade que assola o país. Mesmo com esse público, é importante discutir o impacto desta questão no Estado de Direito brasileiro.

O processo de Lula é assunto de relevância nacional não somente nesse contexto, com incidência em importantes debates sobre presunção da inocência, direito a um julgamento justo, imparcialidade das autoridades judiciais, recurso efetivo. O cidadão Lula, além do candidato Lula, já denunciou que considera ter tido esses direitos violados, chegando inclusive a denunciar essas questões ao Comitê de Direitos Humanos da ONU. Os atalhos tomados em seu processo, as incongruências e exceções permitidas nele, o clamor popular ou a manipulação do mesmo por forças políticas, todos arriscam violar direitos garantidos internacionalmente.

Mesmo no campo da estabilidade política, as eleições de 2018 sem Lula escancarariam as veias abertas da democracia brasileira no pós-golpe. Seria, ao menos para uma parte considerável da esquerda, um convite ao boicote ou ao questionamento do resultado, pela primeira vez desde a constituição de 1988. Mesmo em quem gostaria de ver a liderança da esquerda renovada, ficaria ainda o gosto de que as instituições ditas ‘imparciais’ se mancomunaram com forças políticas e econômicas para inviabilizar o que seria, indiscutivelmente, o nome mais viável da esquerda.

Porém, o maior dano não é esse. Lula está na incômoda posição de ser o peão de uma batalha institucional de egos, na qual o equilíbrio democrático e os direitos individuais estão em jogo. A decisão do TRF-4 em Porto Alegre, no dia 24 de janeiro, mostrará se a apoteose midiática do juiz Sérgio Moro engendrou no nosso sistema judiciário a figura do “juiz irretocável”, o qual nenhuma instância superior tem coragem de moderar. Mesmo presumindo a isenção e imparcialidade de Moro (e para isso ignorando evidências contrárias que, em um país sério, seriam causa para a suspeição), a ideia que o apoio popular ao magistrado valha mais do que a lei, o precedente e a doutrina nas decisões legais é incompatível com uma sociedade regida por leis. As teses que embasaram a condenação de Lula por Moro são controversas – muitos juristas diriam “frágeis” – e necessitam de intensa supervisão das instâncias superiores. Se o TRF-4 não conseguir entregar essa retidão, que credibilidade restará ao judiciário?

Ainda em jogo está a seletividade política no processo judicial. Se a morosidade da justiça é violadora de direitos, quando a justiça é inusitadamente rápida, sente-se o ranço da politicagem indevida. Comparar o tempo recorde em que o recurso de Lula foi julgado, com o protelado processo do ex-governador Eduardo Azeredo (do PSDB), é uma forma de explicitar o abismo sem nexo e sem justiça da forma em que o recurso foi julgado. Fica evidente que a decisão foi apressada para se adequar ao calendário eleitoral, que os procedimentos vigentes foram alterados para prejudicar o réu. Passa a muitos a incômoda noção que o judiciário se desfaz da lei para atender anseios de quem quer impedir a candidatura de Lula. Mesmo se falsa, essa noção é a ruína da justiça.

Em jogo no dia 24 de janeiro está esperança de que os cidadãos brasileiros ainda podem sonhar com um judiciário que não seja escancaradamente parcial. Arriscamos ter mais esse precedente para embasar a tese que o judiciário e o ministério público, ao invés de hors concurs nos assuntos políticos, passaram a competidores visando o próprio interesse de classe; em que pese a lei, em que pese a vontade popular ou a democracia. Num país onde um procurador-influencer quer impor em vazamentos, vlogs, powerpoints e palestras o que não consegue provar nos autos, e onde o árbitro é alardeado e exaltado enquanto antagonista do réu; não há esperança de justiça.

Portanto, mesmo para os que não gostam de Lula, e mesmo para os que não acreditam em sua inocência, vale a pena perguntar: Quantos atalhos processuais, quantos direitos violados, quanto dano institucional seria aceitável para vê-lo impedido de concorrer? A questão ultrapassa, em muito, a figura do ex-Presidente: está em jogo a credibilidade da malha institucional brasileira. E isso afeta cada um de nós.

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Leo Nader é internacionalista e militante de direitos humanos. Mineiro de Belo Horizonte, é mestre em Direito Internacional pela UPEACE (Costa Rica) e em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela Universidade de Oxford (Reino Unido). Tem uma década de atuação profissional em direitos humanos, incluindo em diversas operações de paz da ONU (Libéria, Timor-Leste, Afeganistão, Palestina). Foi subsecretário de direitos humanos de Minas Gerais, e atualmente cursa doutorado em Direitos Humanos e Política Global na Scuola Superiore Sant’ Anna, na Itália.