Texto de Rita Casaro

A companhia não é apenas uma geradora de energia, mas um complexo que envolve quase um terço da eletricidade produzida no país – metade de toda a transmissão – e atende seis Estados da Federação, na área de distribuição. Podemos estar diante da desarticulação do sistema energético nacional e de uma brutal elevação de preços ao consumido

Maior holding de energia da América Latina, a Centrais Elétricas Brasileiras S.A. – Eletrobras, completou 56 anos de instalação oficial no dia 11 de junho. A decisão de criar a companhia havia sido tomada em 1954 por Getúlio Vargas por meio de projeto de lei que enfrentou resistência no Congresso e levou sete anos para ser aprovado. Após a epopeia parlamentar, a Lei nº3.890-A, finalmente foi sancionada por Jânio Quadros, em 25 de abril de 1961 e lançada no ano seguinte, em cerimônia sob a vista do então presidente João Goulart.

Maior holding de energia da América Latina, a Eletrobras foi criada por Getúlio Vargas em 1954. O projeto demorou sete anos para ser aprovado no Congresso. A lei foi sancionada por Jânio Quadros, em 1961. O início das obras se deu no ano seguinte, no governo Jango

Essa longa história – um marco importante da engenharia nacional e da capacidade de planejamento e realização do Estado – pode ter desfecho nada glorioso sob a batuta de Michel Temer, que anunciou, em agosto do ano passado, a intenção de privatizar a companhia.

Compasso de Espera

Sem sucesso em aprovar a inclusão no Programa Nacional de Desestatização-PND por meio da Medida Provisória nº 814/2017, cuja validade expirou sem ter sido votada, o governo lançou mão do Projeto de Lei nº9.463/2018 que também repousa na Câmara. Com dificuldades em fazer tramitar a matéria antes das eleições previstas para outubro, os R$ 12 bilhões que o Tesouro esperava arrecadar com a venda da empresa foram excluídos do orçamento de 2018.
A cifra é o primeiro ponto a chamar atenção no processo, tendo em vista que, segundo a própria administração federal, o total de ativos da Eletrobrás soma R$ 170,5 bilhões e o valor patrimonial atinge os R$ 46,2 bilhões. O evidente mau negócio com a entrega de patrimônio público a preço irrisório, porém, está longe de representar o maior prejuízo a ser causado pela privatização da empresa, conforme apontam especialistas do setor.

Maior conglomerado de geração

A companhia é hoje, segundo dados oficiais, o maior conglomerado brasileiro de geração de energia elétrica, tendo produzido 182,1 milhões de MWh em 2017. Isso corresponde a mais de um terço do consumo no país. No ano passado, a capacidade instalada da Eletrobras atingiu 48.134 MW, o que representa 31% do total no Brasil. Noventa e cinco por cento desse montante tem origem em fontes limpas, especialmente hídrica (leia quadro 1). Ainda, responde por cerca de 50% de toda a transmissão de energia elétrica, somando 65 mil quilômetros de linhas com tensão maior ou igual a 230 KV. Também atua na área de distribuição de energia atendendo 13 milhões de habitantes numa área territorial de 2,46 milhões de km², nos Estados do Acre, Eletroacre; Alagoas, Ceal; Amazonas, Amazonas Energia; Piauí, Cepisa; Rondônia, Ceron; e Roraima, Boa Vista.

Para a Federação Nacional dos Engenheiros-FNE, se a privatização se confirmar, terá como consequência a deterioração do setor elétrico e prejudicará os interesses do país, pelo papel estratégico que a holding representa. “Energia é bem essencial e deve permanecer sob controle do Estado para que se garantam desenvolvimento econômico, bem-estar social e soberania nacional”, afirma o presidente da entidade e profissional do setor, Murilo Pinheiro.


Distribuidoras na berlinda

Suspenso o plano de desestatizar a Eletrobras em seu conjunto, o objetivo da direção da empresa e do governo federal é vender seis distribuidoras.
Para tornar o produto mais interessante ao mercado, segundo consta na justificativa do projeto de lei, a Eletrobras deve assumir cerca de R$ 11 bilhões em dívidas das distribuidoras, cujo passivo chega a R$ 24,9 bilhões.

Completa a promoção de venda a liberação do cumprimento de indicadores de qualidade no fornecimento de energia pelos futuros controladores. A denúncia foi feita ao Ministério Público Federal pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas do Estado do Piauí-Sintepi.


Papel relevante

Roberto D’Araújo, diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético-Ilumina, também ressalta a relevância da companhia. “Só quem não conhece a história, não dá valor ao que a Eletrobras fez. Ela coordenou toda a expansão do setor. Se temos esse sistema de transmissão que une o Brasil de leste a oeste, é graças à Eletrobras”.

Para o especialista, é preciso ter em mente que as usinas hidrelétricas “não são meras fábricas de kw/h”. “Hidrelétrica é uma entidade na integração regional. Ultimamente, assumiu função muito mercantil, mas pode ter variados usos, como piscicultura, turismo, transporte fluvial e suprimento de água em municípios”, enumera.

O consumidor brasileiro paga a quinta tarifa mais cara do mundo. Com a privatização, esse fato se agravará. “Vamos voltar 30 anos, quando a maior parte da população não tinha energia elétrica”, alerta o engenheiro Fernando Pereira

Para D’Araújo é preciso retomar a função mais abrangente da Eletrobras para que o Brasil possa acompanhar as necessidades de avanço no setor elétrico e de desenvolvimento. “Poderia ter um progresso em energia solar imenso, mas o Centro de Pesquisas de Energia Elétrica-Cepel está sendo fragilizado. Destruir a Eletrobras é burrice, você fica sem uma ferramenta. A companhia é o martelo. O problema é mão que o está segurando; o governo é a mão barbeira que está fazendo a Eletrobras de gato e sapato”.

Golpes em série

Na avaliação de D’Araújo, esse processo tem se dado desde os anos de 1990, quando da privatização do setor elétrico. À época, conta ele, “jogaram para cima da Eletrobras as distribuidoras que não interessaram ao setor privado por não terem rentabilidade maior”. Para assumir o controle de distribuidoras da região Norte e Nordeste, a empresa, relata o diretor do Ilumina, “foi obrigada a pegar um empréstimo na Reserva Global de Reversão-RGR, fundo que não tem nada a ver com financiamento para compra de ativos”.

O segundo golpe a abalar a Eletrobras se deu no racionamento, em 2001, quando o consumo caiu 25% e depois permaneceu 15% menor que o registrado antes do período de escassez. “Quando diminuiu a demanda, quem não tinha contrato passou a gerar sem ganhar nada, vendendo energia no mercado livre por uma bagatela durante quatro anos”, recorda D’Araújo.

Por fim, aponta, veio a Medida Provisória 579, editada em 2012 com o objetivo de baixar as tarifas de energia no País, atendendo especialmente a reivindicação da área industrial. O peso da medida foi assumido basicamente pelas usinas antigas da Eletrobras, cujo investimento já havia sido amortizado. Essas tiveram os preços de sua energia reduzidos drasticamente. Até meados de junho de 2018 estavam no patamar de R$ 40,00/MWh. No entanto, a receita da empresa corresponde a apenas um quarto desse valor, o restante sendo taxas e impostos, o que a inviabiliza financeiramente.

Como resultado, tem-se o principal argumento para a privatização, que é a dívida de cerca de R$ 44 bilhões, de acordo com balanço do primeiro trimestre de 2018, divulgado em maio último. Também é apontada como motivo para a desestatização a desvalorização das ações da empresa, cotadas a R$ 14,72 no final de junho. Para reverter o quadro, explica o diretor do Ilumina, não há escapatória: seria necessário elevar a tarifa cobrada pelas usinas da Eletrobras.


Um gigante que pertence aos brasileiros

A Eletrobras controla a Amazonas GT, CGTEE, Chesf, Eletronorte, Eletronuclear, Eletrosul e Furnas. É, ainda, em nome do governo brasileiro, dona da metade do capital de Itaipu Binacional. Completam essa estrutura as seis distribuidoras na região Norte e Nordeste, o Centro de Pesquisas de Energia Elétrica-Cepel e a Eletropar.
A geração compreende 48 usinas hidrelétricas, 112 termelétricas a gás natural, óleo e carvão, duas termonucleares, 70 usinas eólicas e uma usina solar, próprias ou em parcerias, distribuídas por todo território nacional.

Entre os empreendimentos da Eletrobras estão a parte brasileira de Itaipu, Tucuruí, Complexo Paulo Afonso, Xingó, Angra 1 e Angra 2, Serra da Mesa, Furnas, Teles Pires, Belo Monte, Jirau, Santo Antônio, Complexo Eólico Campos Neutrais e a usina Megawatt Solar.

A Eletrobras é também responsável pelo programa Luz para Todos que levou energia a cerca de 15milhões de brasileiros, entre 2003 e 2013.


A tarifa da privatização

A medida certamente desagradará o consumidor cativo brasileiro que, apesar dos preços da Eletrobras, paga a quinta tarifa mais cara do mundo porque outras geradoras que compõem o setor elétrico têm preços muito mais elevados, que chegam a R$1.000/MWh. No entanto, o reajuste indicado por D’Araújo como imprescindível para sanear a empresa não se compara ao que virá por aí se ela for privatizada. “A atração de capitais privados para a venda de ações se dará justamente pela transformação dos atuais contratos de concessão de subsidiárias da Eletrobras, que estabelecem as receitas de 14 usinas hidrelétricas antigas, remuneradas pelo regime de cotas. Isso provocará aumento brutal das tarifas a serem pagas pelas distribuidoras de energia, o que, obviamente, será repassado aos consumidores finais”, aponta Murilo Pinheiro, da FNE.

“A tarefa a ser cumprida é o resgate da Eletrobras e o aprimoramento do setor elétrico no país. Energia é bem essencial e deve permanecer sob controle do Estado para que se garantam desenvolvimento econômico, bem-estar social e soberania nacional” – Murilo Pinheiro, presidente da Federação Nacional dos Engenheiros

“É ridículo o argumento do governo. Eles dizem que para viabilizar a financeirização da Eletrobrás será feita a descotização da tarifa e, após a privatização, as usinas passarão a cobrar R$ 250/MWh. Quem acha que vai aumentar cerca de sete vezes o preço de 16% das usinas e não haverá aumento de tarifa?”, questiona D’Araújo.

Preocupação com consumidores

A preocupação com os consumidores também é a principal preocupação do Coletivo Nacional de Eletricitários da Federação Nacional dos Urbanitários-FNU, que deflagrou greve pelo período de 72 horas, no dia 11 de junho, em protesto à privatização. “O dano maior será a tarifa para o consumidor. Hoje, as distribuidoras compram da geradora estatal. Se privatizar, vai ser lucro sobre lucro. Vamos voltar 30 anos, quando a maior parte da população não tinha energia elétrica”, alerta Fernando Pereira, secretário de Energia da FNU e coordenador do CNE.

Para D’Araújo seria perfeitamente possível recuperar a empresa mantendo-a pública, com a tarifa de R$ 120,00/MWh. “O mercado vai gostar de saber que a Eletrobras estatal terá lucratividade. Se você pegar a cotação em 2011, o valor da ação corrigido é muito maior que o pico da cotação quando se anunciou que ela seria vendida. Quando a estatal tem condições de investimento, porque tem receita, o mercado gosta, sabe que ela pagará dividendos”.
Para o presidente da FNE, não resta dúvida quanto à premência de seguir esse caminho: “A tarefa a ser cumprida é o resgate da Eletrobras e o aprimoramento do setor elétrico no país. Energia é bem essencial e deve permanecer sob controle do Estado para que se garantam desenvolvimento econômico, bem-estar social e soberania nacional”.

FONTE: https://www.laurocampos.org.br/2018/09/18/eletrobras-pode-terminar-como-mais-um-capitulo-do-desmonte-nacional/