Ex-ministro das Relações Exteriores e da Defesa analisa o papel das Forças Armadas no país
por Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena
“Eles queriam pegar o Lula. Alguns grupos econômicos internos e externos queriam tirar o Lula e o projeto progressista no Brasil. Mas, para fazer isso, eles acabaram debilitando todas as instituições políticas. E aí os militares ressurgem. O que eles não perceberam é que, para desacreditar o Lula, eles acabaram tendo que desacreditar a política como um todo, e o filho disso é o Bolsonaro. Agora que está chegando ao final eles estão assustados”.
As palavras são de Celso Amorim em entrevista ao TUTAMÉIA (acompanhe no vídeo abaixo). Na conversa, ele analisa o papel das Forças Armadas no país, condena a possibilidade de venda da Embraer e da Eletronuclear e defende a anulação ou revisão de negócios prejudiciais à soberania do país.
Ministro das Relações Exteriores (nos governos Lula e Itamar Franco) e da Defesa (com Dilma), ele considera “inacreditável” esse movimento de militares da reserva em partidos políticos que agem como “se estivéssemos em plena Guerra Fria, [dizendo que é preciso] acabar com os comunistas, com os petistas, que vamos liberalizar tudo, aderir totalmente aos EUA”.
Para Amorim, 76, “a visão deles é de tutelar as instituições e, implicitamente, têm a ideia de que o Brasil tem que ser mesmo dependente dos EUA. [Dizem] Então a gente entrega essa parte, a parte global e eles vão nos defender da China ou sei lá de quem. Fico impressionado que essa gente tenha tanto peso. Mas acho que eles vão perder e isso vai se diluir”.
Ao TUTAMÉIA, o ex-ministro observa a total ausência de noção de soberania em muitos setores dominantes. “O interesse da classe dirigente no Brasil em manter a distância da ralé é maior do que o de se tornar independente”. E critica a atitude subordinada de parte do judiciário e da grande mídia.
Nesta entrevista, ele trata de Donald Trump, de China, da geopolítica na América Latina e do debate sobre a criação de uma internacional progressista. Ressalta a enorme repercussão externa do processo contra Lula e dos apoios que o ex-presidente tem conquistado pelo mundo em prol de sua libertação. Confiante na vitória de Fernando Haddad, ele afirma:
“O que estamos defendendo acima de tudo é a democracia, que tem um significado social. Democracia hoje é não permitir que um governante fascista [chegue ao poder]. Na Europa se cometeu esse erro quando Hitler subiu. Precisamos estar unidos contra o fascismo”.
A seguir, os principais pontos da entrevista:
Século da China e EUA sem projeto
A tendência é da China de se tornar grande potência e, provavelmente, a maior potência econômica, o que se repercute no lado político e no aspecto militar. É uma tendência secular. Como o século 20 talvez tenha sido o século norte-americano, o século 21 vai ser em grande parte o século chinês. Toda vez que há uma mudança na hegemonia mundial, seja para que lado for, se tem riscos graves.
É a primeira vez que os EUA, desde a segunda guerra mundial, não têm um projeto para o mundo. Você pode dizer que sempre foi a América em primeiro lugar, mas eles revestiam isso de outros aspectos que acabavam sendo importantes. Atuavam na ONU. Hoje eles estão abandonando tudo. Só não abandonaram ostensivamente o FMI. Talvez por causa do temor sobre o espaço que a moeda chinesa possa tomar.
No discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU, Donald Trump disse que não quer saber de globalismo. Isso é uma coisa nova que nos faz pensar. Tem aspectos negativos, como um livre curso para o unilateralismo, mas também abre brechas que podem ser bem utilizadas por países. Não para o Brasil como está hoje, mas para um Brasil que volte a ser democrático e pujante.
BRICS são fator de equilíbrio
Temos que almejar a multipolaridade. Teremos um mundo com duas potências muito grandes, China e EUA, que terão embates de várias formas, como estamos vendo agora na área comercial. Tem uma outra grande potência militar que é a Rússia, que tem uma visão geopolítica tradicional. Tem outros países que podem ter influência –e um deles é o Brasil.
Não é à toa que o Brasil foi logo incluído no G20. O Brasil foi um dos organizadores iniciais dos Brics, fruto dessa articulação da multipolaridade. Os Brics são um fator de equilíbrio mundial. O Brasil traz um softpower para esse grupo historicamente. Temos fronteira com dez países e não temos guerra em 150 anos. Não é pouca coisa. Foi criada uma ideologia nacional de paz e favorável ao multilateralismo –não é o que nós estamos vendo agora [no governo Temer].
Decisão do comitê de Direitos Humanos da ONU sobre Lula
Fico chocado quando vejo várias pessoas, um juiz de um tribunal superior e um chefe militar dizer que o Brasil não vai se curvar à ONU. O que é isso? A ONU somos nós; nós criamos a ONU. Então, como vamos falar mal do Trump na questão do clima? É opcional você entrar ou não. Mas, uma vez que você entrou, você tem que cumprir, é obrigado. Isso é básico. Você não pode alegar uma ordem interna, como a lei da ficha limpa, para descumprir uma ordem internacional.
Eu nunca vi um diplomata, mesmo os conservadores, não defender o multilateralismo. Esse caso do direito de Lula ser candidato é uma afronta às normas multilaterais. Não perceber a importância de um órgão de tratado é um absurdo. E não cumprir a ordem é uma falta de percepção absoluta da cultura de direito internacional, de inserção no mundo.
Verdadeiro mecanismo era inviabilizar Lula
Há pessoas que são muito ignorantes. A ONU não é um galho; é uma árvore que ocupa o mundo inteiro. Não tem essa história de cada macaco no seu galho. É uma coisa triste e não corresponde à visão que o Brasil foi acumulando. Já em parte do governo militar a visão não era essa. Havia um mecanismo claro definido. Não o mecanismo da Netflix, ao contrário. E o mecanismo era inviabilizar o Lula. [Fazer] o que for necessário para inviabilizar o Lula; depois, pode até amaciar.
A percepção é de que o Lula tem liderança para fazer mudanças muito profundas que eles temem. Tanto no plano interno como no internacional.
Cancelamento de títulos de eleitor
O Brasil surpreende a cada minuto. Uma coisa inacreditável. O direito do voto é muito mais importante do que qualquer formalidade. Se você chegou à conclusão que três milhões e meio de pessoas não assinaram [fizeram a biometria para o recadastramento], algo está errado. É logico que são os mais pobres [os prejudicados]. Se três milhões e meio ficaram de fora, tem algo errado. Eles deveriam ter percebido há mais tempo que algo não tinha funcionado. É lamentável. Foi a diferença, mais ou menos, da Dilma sobre o Aécio [na eleição de 2014]. Isso pode ser usado como pretexto para um lado ou para o outro para deslegitimar o resultado. É muito grave. Devia ter tido um alerta. O objetivo principal é que as pessoas votem. É inacreditável.
Política altiva e ativa continua valendo
A eleição [de López Obrador] no México pode ajudar a modificar [o quadro na América Latina]. O México poderá ter um papel importante. Se aqui no Brasil elegermos um governo progressista, se poderá criar uma coisa nova. Haddad é muito competente, excelente, e poderá conduzir muito bem o governo brasileiro. É preciso retrabalhar a Unasul e pensar na América Latina e caribenha como um todo. Não é só repetir a política anterior. Mas a máxima da política ativa e altiva continua valendo: não ter medo de ter um protagonismo internacional e, ao mesmo tempo, ter esse protagonismo em defesa do interesse próprio, sem deixar de ser solidário com outros países em desenvolvimento.
Diferença entre 2003 e 2019
A principal diferença é que naquela época os EUA estavam em plena guerra no Iraque. Estavam com o prato cheio e isso abriu espaço para que nós agíssemos mais livremente aqui.
Se a guerra comercial com a China se aprofundar, isso vai ter consequências para o mundo inteiro.
Esse mito que a gente teve uma atitude ideológica [nas relações internacionais] é totalmente mito. E como todo o bom mito, mentiroso. Ou uma história de fadas. Quem faz política ideológica é o Itamaraty de hoje, infelizmente, o ministro.
Naquele tempo, conversávamos com todo mundo.
Ameaças de Trump à Venezuela
Tem pessoas cuja fala é mais grave do que a ação. Ele pode não se envolver, mas acaba incentivando grupos lá embaixo. A guerra do Vietnã começou com o envio de assessores militares. Para que isso não aconteça [agora, na América do Sul], o Brasil tem que exercer o seu peso. Muitos acham que os EUA têm que dominar, que combater a corrupção que é o grande mal no mundo.
Trump tem lado de pragmatismo. Mas tem que ter um contrapeso aqui, se não ele vai. É aquela história do Hamlet. Polonius dizia assim: é loucura, mas há método dentro dela. O Brasil tem um papel importante até para criar um contrabalanço. Ter um presidente dos EUA com pouco charme favorece uma política de multipolaridade.
Participação dos EUA no golpe do Brasil
Se houve alguma participação americana no golpe no Brasil –eu acho que houve. Pode não ter sido tudo planejado lá. Que houve, houve. Houve a espionagem na presidente Dilma, na Petrobras, do Ministério de Minas e Energia, onde fica a Nuclebras. Isso não é invenção. Existiu, tá lá. Começou no governo Obama.
Militares com papel profissional
É inacreditável que esse partido militar que se formou –que não é a instituição militar das forças armadas–, os militares que foram para a reserva e para partidos políticos olhem aqui como se estivéssemos em plena Guerra Fria, [dizendo que é preciso] acabar com os comunistas, com os petistas, que vamos liberalizar tudo, aderir totalmente aos EUA.
Os militares tiveram grande importância na história do Brasil, ajudaram a construir o Brasil moderno, a República, o tenentismo, que levou às reformas. Os miliares têm importância muito grande, positiva em alguns momentos, menos positiva e até negativa em outros, como em 64. Eles precisam, alguns militares, entender que o país que eles ajudaram a fazer já cresceu. Hoje em dia os militares não podem mais ter o papel que eles tinham.
Alguns, os que começam a tutelar muito, [dizem que] o Brasil tem que ser isso, aquilo. Não tem mais isso. Os militares, hoje, como em qualquer país desenvolvido, têm tem que desempenhar uma função profissional. E a função profissional é defender a pátria contra ameaças externas, provenham elas de onde vierem.
Fronteiras e segredos nucleares
O Brasil é um país riquíssimo em recursos naturais –o que ficou mais evidente com o Pré-Sal. Tem que saber proteger esses recursos. Por isso temos que ter o submarino de propulsão nuclear, tem que ter caças, em relação aos quais se tenha capacidade tecnológica de desenvolver –que é a Embraer. Temos que ter um sistema de controle das fronteiras com tecnologia. São quase 17 ml quilômetros. Não fiz a conta, mas se um brasileiro der a mão a outro não consegue barrar a fronteira. Precisa de meios tecnológicos, e isso a gente tem que fazer. Isso é uma coisa que só os militares podem fazer.
Cibernética: a gente tem que proteger. Eu não sei se os segredos da nossa tecnologia nuclear não estão vulneráveis porque o sistema de proteção em torno deles não é com software nacional. A gente sabe que tem os back doors, o que ficou claro com [as revelações de Edward] Snowden. Esse é o papel deles.
Tutela das instituições
Há um grande grupo que ainda vê na tutela das instituições internas a sua missão; tutela e execução, através da lei e da ordem. O que é errado. Isso não deve ser a missão deles. Há uma outra linha, menor numericamente, que percebe essa missão maior de defender a pátria, de ter uma cooperação com a América do Sul, de ter um cinturão de boa vontade em torno das fronteiras brasileiras, ter uma projeção com a África. Muitos têm essa visão.
Esse momento da crise institucional brasileira foi provocado por essa judicialização da política. Eles queriam pegar o Lula. Alguns grupos econômicos internos e externos queriam tirar o Lula e o projeto progressista no Brasil. Mas, para fazer isso, eles acabaram debilitando todas as instituições políticas. E aí os militares ressurgem.
O comandante do Exército falou algumas coisas que não correspondem ao pensamento que ele mesmo já havia anunciado antes. Nós não queremos isso. Queremos militares que sejam capazes de defender a pátria como fazem, de forma diferente, os diplomatas, os funcionários do Banco Central. Eles não são melhores nem piores do que esses outros brasileiros. Eles têm uma característica, o poder de fogo. Então, têm que ser mais cautelosos. Se um funcionário do BC ou um diplomata diz uma bobagem, ela pode ser corrigida facilmente. Mas, se um militar disser uma coisa assim, cria um abalo.
Venda da Embraer é absurda
A venda da Embraer é totalmente absurda. Acho fundamental a Embraer continuar íntegra e em mãos nacionais predominantemente. O negócio deve ser desfeito ou se deve indicar que não vai poder fazer. Fere diretamente [a soberania].
Sobre esses negócios [Petrobras, Embraer, outras vendas], a bandeira deve ser desfazer. Vai ter que ter uma equipe discutindo a renegociação. Certos negócios vão ter que ser totalmente desfeitos, ou poderão ser renegociados, garantindo uma participação brasileira maior, como os chineses fazem.
A responsabilidade das grandes decisões políticas não podemos transferir para os militares. Isso é político, do país, de um governo eleito, legítimo.
Eletronuclear estratégica
A Eletronuclear vai ser cliente das centrífugas que vai produzir urânio enriquecido. O Brasil, a Marinha desenvolveu tecnologia de ter ultracentrifugação para enriquecer o uranio. Mas a demanda da Marinha não gera uma produção industrial. O que pode gerar recursos é a produção de urânio enriquecido em bases industriais comerciais. Quem faz isso são essas empresas. Se a Eletrobras vende para uma empresa privada, inclusive estrangeira, se está perdendo o controle sobre algo fundamental para o Brasil que é a energia nuclear. Em nenhum pais do mundo é feito dessa maneira.
Esquerda e militares
Fico impressionado com uma parte dos militares –que se expressa na linha que apoia o candidato Bolsonaro. Essas pessoas não têm essa visão do pais. A visão deles é tutelar as instituições e, implicitamente, têm a ideia de que o Brasil tem que ser mesmo dependente dos EUA. Então a gente entrega essa parte, a parte global e eles vão nos defender da China ou sei lá de quem. Fico impressionado que essa gente tenha tanto peso. Mas acho que eles vão perder e isso vai se diluir.
A esquerda tem que tomar um pouco de cuidado. Muito frequentemente as Forças Armadas são acusadas de maneira indiscriminada e isso não ajuda em nada. As Forças Armadas são nossas e são nossos instrumentos de defesa do pais e da pátria, da nação brasileira. E eles têm que trabalhar com muita delicadeza, cuidado. Temos que respeitá-los. Senão você estimula que os mais radicais achem que nós somos contra eles, coisa que não é verdade. Nós precisamos deles para defender o pais.
Vira-lata que gosta de ser vira-lata
O que distancia o Brasil de qualquer outro grande país atualmente é que em muitos setores da classe dirigente há essa total ausência de noção de soberania. Quando se fala do complexo de vira-lata está se falando disso. Não é só que é vira-lata é que gosta de ser vira-lata. Gosta de ser mandado, acha mais fácil. O interesse da classe dirigente no Brasil em manter a distância da ralé é maior do que o de se tornar independente. E a mídia tem nisso um papel fundamental.
E eles conseguiram fazer uma coisa importante também com uma parcela importante do judiciário. Cria-se uma filosofia, como se existisse uma justiça global. Mas não da ONU, mas sim dos EUA. E nós somos aqui executores dessa justiça global.
Militares de 68 e judiciário de hoje
Está escrito entre os objetivos de segurança nacional ou de política externa norte-americana combater a corrupção, inclusive para remover governos que sejam contra os interesses americanos. Estamos aqui executando isso. Eles estão convencidos dessa coisa como, em 64, os militares (os que ganharam) se convenceram que tinham que trabalhar na defesa do ocidente contra o comunismo.
Essa gente tem uma visão subordinada que é muito espraiada nas classes dominantes brasileiras, certamente na mídia e, para minha surpresa, no Judiciário.
Bolsonaro é fruto do golpe
O que eles não perceberam é que, para desacreditar o Lula, eles acabaram tendo que desacreditar a política como um todo. E o filho disso é o Bolsonaro. Agora que está chegando ao final eles estão assustados. Em certos casos o ódio que existe entre classes é maior do que a indignação com posições absurdas.
Estrangeiros estão vendo aqui, com susto, o Brasil caminhar para uma solução fascista que eles abominam em seus países.
O que estamos defendendo acima de tudo é a democracia, que tem significado social. Democracia hoje é não permitir que um governante fascista [chegue ao poder]. Na Europa se cometeu esse erro, quando Hitler subiu. Precisamos estar unidos contra o fascismo. Não existe alternativa ao otimismo. A alternativa é a morte e nós lutamos pela vida. Acreditem na vida.
Internacional progressista e new deal
Há um mal-estar [no capitalismo]. Não basta gerir bem o capitalismo, é preciso fazer algo mais.
O movimento de Bernie Sanders e Yanis Varoufakis, a internacional progressista, precisa ser visto com atenção e interesse. O mundo não é aquela coisa simples dos bons e dos maus como as pessoas achavam na época da Guerra Fria; é muito mais complexo.
É preciso um new deal no mundo. Esse novo arranjo passa pela compreensão do que é a China, pela diminuição dos conflitos com os EUA, por um novo papel para a Europa e para países como Brasil, índia, África do Sul, México.
Edição: Tutaméia