Joênia Wapichana vai representar o estado de Roraima, região brasileira marcada por conflitos de terras indígenas
Pela primeira vez na política brasileira, uma representante dos povos indígenas vai ocupar um cargo no Congresso Nacional. Do partido Rede Sustentabilidade, Joênia Wapichana foi eleita deputada federal de Roraima no domingo e trás como principais pautas a defesa dos direitos indígenas.
Joênia tem “Batista de Carvalho” como sobrenome na certidão de nascimento, mas utiliza o nome indígena em sua atuação política. Ela pertence ao povo Wapichana, da Comunidade Truarú. Sua trajetória é marcada pela defesa dos povos indígenas e pela conquista de espaços. Além de ser a primeira deputada federal indígena, Joênia também foi a primeira mulher indígena a se formar em Direito no Brasil, na Universidade Federal de Roraima, em 1997. Ela também é mestra pela University of Arizona, dos Estados Unidos, desde 2011.
A formação acadêmica permitiu com que a sua atuação nas causas indígenas fosse mais ampla e desde 1999 a advogada indígena coordena o Departamento Jurídico do Conselho Indígena de Roraima.
Um dos destaques de sua trajetória profissional e política é a atuação como advogada na demarcação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, que fica na fronteira com a Venezuela. Apesar de já identificada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em 1993 para demarcação, pressões políticas tem retardado o processo e a terra foi sendo cada vez mais ocupada por produtores de arroz, que se recusam a sair dali. O conflito na região perdura desde a década de 70 e é um dos mais emblemáticos conflitos de terras indígenas no Brasil, com muitas mortes decorrentes da disputa pelo território, que tem 1,7 milhões de hectares.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Joênia falou sobre as pautas que dará andamento em seu mandato. Ela também fala sobre os desafios de ser a primeira mulher indígena eleita deputada federal e o poder simbólico que isso representa para seu povo.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato – O que representa a conquista de uma vaga no parlamento pra participar da luta dos povos indígenas?
Joênia Wapichana – Representa uma ferramenta super necessária neste contexto que estamos vivendo hoje no país, quando existe riscos aos direitos que já são garantidos na Constituição. Há necessidade de os povos indígenas terem sua defesa ali, mesmo que seja só uma [pessoa] ali pra bater de frente com uma bancada anti-indígena, mas é necessário.
Que pautas principais você pretende levar por meio do seu mandato?
Vou te colocar três bandeiras que estou defendendo. Primeiro, é a defesa dos direitos coletivos indígenas e dos direitos sociais.
Nós sabemos da defesa da demarcação das terras indígenas, da necessidade de ter a implementação dos processos demarcatórios e, pra isso, temos que combater propostas anti-indígenas que tramitam no Congresso Nacional, como a PEC 215; como o projeto que tenta fazer com que as terras indígenas sejam arrendadas; e outras de qualquer facilitação pro licenciamento ambiental.
E também fazer com que os direitos indígenas, principalmente os direitos de consulta, sejam inseridos pela proposta de lei que tramita no Congresso Nacional, como o PL 1610, que tenta regulamentar a mineração em terras indígenas. E, nessa mesma linha dos direitos sociais, também vai a priorização dos direitos fundamentais não somente paras comunidades indígenas, mas pra todos, que é a questão da educação. Na questão indígena, é [necessário] ter um sistema próprio de educação escolar.
A segunda bandeira que vou levar é a da sustentabilidade, pra que as comunidades indígenas sejam incluídas no processo geral de planejamento do país, e garantir suas práticas culturais, seus conhecimentos tradicionais e mesmo a produtividade e a circulação da renda interna sem que isso possa significar um desrespeito pra cultura ou qualquer outro tipo de direito. É parar com essa discussão de que terras indígenas são empecilho ao desenvolvimento do Estado. O que está faltando é oportunidade. Se é preciso leis pra garantir isso, vou trabalhar pra isso, levando a sustentabilidade das comunidades indígenas.
A terceira bandeira é focada na questão do orçamento público. A gente tem que trabalhar pela elaboração e pela consolidação das leis, mas nem todo o orçamento é conivente com a realidade que temos. Eu não concordo e vou tentar combater a PEC da morte, que congela o nosso orçamento. Dentro dessa linha do orçamento, também vou lutar contra a corrupção, as regalias e os privilégios que existem.
Para que isso seja consolidado, nós precisamos de ferramentas e de fiscalização dos orçamentos, assim como os recursos federais que vem em nome dos povos indígenas.
A bancada ruralista, conhecida por ser o principal grupo algoz dos indígenas no Congresso, conta com mais de 200 membros. Que estratégias você pretende usar pra que o seu mandato tenha voz diante desse cenário de hegemonia do poder econômico na Câmara?
Vai ser difícil, mas não impossível. Nós vamos usar todas as alianças possíveis, levando pessoas que defendem os direitos humanos, os direitos sociais, que apoiam a dignidade, a vida, a questão do meio ambiente, a sustentabilidade, que acreditam na pessoa desde já, apoio da população brasileira e dos povos indígenas em geral porque só assim a gente vai conseguir barrar muitos projetos inconstitucionais, fazer valer o que existe na nossa Constituição Brasileira e não deixar retroceder nossos direitos garantidos. E fazer com que os regimentos, todo os argumentos jurídicos sejam aplicados, então vou usar do que eu tenho de conhecimento, prática e experiencia.
O que lhe vem à cabeça quando lembra que será a primeira mulher indígena a ocupar uma vaga na Câmara dos Deputados?
Eu estou escrevendo a nossa história, fazendo valer o que os povos indígenas já tinham planejado há muito tempo. Então eu sou fruto desse sonho de muitos anos, muitas gerações que estão aí. Porque a nossa história, para nós, povos indígenas, principalmente o movimento de Roraima, a gente já tem experiência que nunca foi dado nada de graça pra nós.
Tudo isso que a gente conquistou, todos os direitos, as demarcações de terra, foi fruto de uma longa batalha, uma longa luta de união dos povos, de movimentos e pessoas que apoiam a causa indígena e os direitos humanos. Então o que vem na minha mente é que é só o primeiro passo. Quando me formei em Direito, eu estava abrindo essa história para vir outras pessoas.
Como foi o processo de você se candidatar ao cargo de deputada federal?
O fato de ser mulher indígena, a minha história, pra ter chegado até aqui. Não foi eu que cheguei e disse que queria ser [deputada], mas foi um convite da nossa militância, de uma grande assembleia indígena que teve na aldeia Raposa Serra do Sol, quando avaliaram que era necessário os povos indígenas terem uma participação nesse processo eleitoral.
Sempre a gente tem que ir pra luta e se a política é uma ferramenta, é o meio da gente também lutar pelos nossos direitos, a gente tinha que participar. Então esse comprometimento meu com a causa indígena e da minha identidade indígena com o meu povo, foi que veio esse resultado, então eu te digo, nós estamos escrevendo a nossa história.
Por fim, o que fica como lição diante de mais esta conquista que você teve agora?
É o que eu sempre coloquei na minha campanha. Tudo que a gente passa a decisão é nossa. Se a gente quer mudança, a gente tem, se a gente quer, a gente pode, então a decisão é nossa. Cabe a nós lutar, unir e ir pra luta e sonhar. Nós tivemos uma decisão, tivemos trabalho coletivo, tivemos participação de todos e nós ganhamos. A lição é essa.
O momento é muito mais do que necessário, oportuno e importante, nesse cenário politico, nesse novo quadro político que o Brasil vai ter ano que vem. Se a gente está aí na política, os indígenas, não é por folia ou alguém disse que era bonito. É por extrema necessidade que a gente está aí.
Edição: Diego Sartorato