A polêmica sobre notícias falsas na rede não pode servir de álibi para grandes corporações midiáticas definirem o que pode ou não ser divulgado, dando curso a uma espécie de censura privada. Até mesmo figuras de proa do Judiciário acabam fortalecendo a ideia de que a imprensa tradicional seria uma espécie de “guardiã da verdade” em meio à multiplicação de vozes e opiniões pela internet.

Texto de Bia Barbosa e Jonas Valente*

As campanhas eleitorais vêm passando por uma série de mudanças, marcadas, sobremaneira, pelo uso intenso das novas tecnologias de informação e comunicação. Plataformas digitais como facebook e aplicativos de mensagens como o whatsapp já passaram a ser um espaço privilegiado de circulação de informações e busca do eleitorado. Tal avalanche comunicacional tem gerado, por outro lado, um debate sobre quais informações são verdadeiras e como fazer para identificar cada uma delas.
Episódios como as eleições presidenciais dos EUA, em 2016, e o referendo do Brexit no Reino Unido, em 2017, incitaram ainda mais o debate sobre a possível influência de informação manipulada, incluindo as chamadas fake news, no resultado de eleições.

Em outubro passado, no Brasil, o Tribunal Superior Eleitoral-TSE criou um Conselho Consultivo para propor uma forma de fiscalizar e impedir a reprodução/compartilhamento de notícias falsas na internet. Convidou o Exército, a Agência Brasileira de Inteligência-Abin, a Polícia Federal, entre outros órgãos, para discutir regras a serem aplicadas no país. Desde então, o presidente da Corte, Luiz Fux, tem feito afirmações preocupantes, incluindo a de que o resultado de uma disputa eleitoral poderia ser anulado “se o resultado da eleição for fruto de uma fake news”. Segundo Fux, a anulação seria feita com base no Código Eleitoral, que já considera crime a divulgação de propaganda com fatos sabidamente inverídicos relacionados a partidos ou candidatos.

Episódios como as eleições presidenciais dos EUA, em 2016, e o referendo do Brexit no Reino Unido, em 2017, incitaram ainda mais o debate sobre a possível influência de informação manipulada, incluindo as chamadas fake news, no resultado de votações

Mas, como comprovar que a maioria dos mais de 100 milhões de eleitores brasileiros terá tido seu voto influenciado por uma ou várias informações manipuladas? Num contexto de ruptura democrática já em curso, a declaração é preocupante, principalmente porque as fake news poderiam, nesse caso, ser usadas como pretexto por aqueles que não concordarem com um resultado das urnas.

Ignorando a legislação

Fux engrossa o discurso daqueles que defendem a necessidade de um novo marco legal no país para combater as chamadas notícias falsas. Qualquer lei que seja aprovada agora pelo Congresso não terá mais validade para o pleito deste ano. Mesmo assim, em junho, por ocasião de uma Comissão Geral realizada sobre o tema no Plenário na Câmara dos Deputados, o presidente da Casa, Rodrigo Maia do DEM-RJ, propôs a criação de “conselhos de supervisão” que poderiam ordenar a remoção de determinado conteúdo da rede, de forma provisória, antes da deliberação final do Poder Judiciário. Para Maia, a medida seria necessária porque “a internet não pode ser espaço de vácuo legal, terra sem lei”.

O presidente da Câmara ignora, assim, não apenas o Marco Civil da internet, lei aprovada em 2014 e que se tornou referência global para a regulação de direitos e deveres no mundo online, como todo o marco normativo brasileiro para crimes contra a honra – injúria, calúnia e difamação – e que já pode ser utilizado para o tratamento de notícias falsas que circulam na rede. Esse marco foi base, por exemplo, para a recente decisão da Justiça sobre as mentiras disseminadas nas redes sociais, após o assassinato da vereadora do PSOL do Rio de Janeiro, Marielle Franco, e do motorista Anderson Gomes.

Episódios como as eleições presidenciais dos EUA, em 2016, e o referendo do Brexit no Reino Unido, em 2017, incitaram ainda mais o debate sobre a possível influência de informação manipulada, incluindo as chamadas fake news, no resultado de votações

Mesmo assim, o Congresso brasileiro foi tomado por dezenas de novos projetos de lei propondo enfrentar o fenômeno, baseados em dois eixos centrais: 1) a criminalização, com a criação de um novo tipo penal, da produção e compartilhamento das fake news, numa resposta punitivista ao problema; e 2) a remoção imediata, pelas plataformas, de conteúdos considerados falsos. Essa tentativa de regulamentar a retirada de conteúdos da internet, por suposta falsidade ou suposta ofensa a terceiros, vem sendo reiterada por inúmeros deputados federais, que veem aí uma oportunidade de silenciar vozes dissonantes durante a disputa eleitoral.

Em paralelo, a imprensa tradicional brasileira tem, em uníssono, utilizado a polêmica para tentar retomar o histórico lugar de “guardião da verdade”, como se os noticiários dos grandes meios impressos e televisivos fossem isentos e tivessem o privilégio exclusivo sobre a produção de informação “de qualidade”. Essa suposta isenção ignora, inclusive, o histórico de desinformação, com notícias flagrantemente falsas, assuntos manipulados e pautas silenciadas pelos meios tradicionais do país, por decisão de grupos econômicos, políticos e/ou religiosos proprietários desses meios e/ou pressão de seus anunciantes. Trata-se de um movimento que visa manter o domínio dos grupos comerciais, que sempre se beneficiaram de uma estrutura de mercado concentrada, afetando a diversidade e pluralidade de ideias e a qualidade do debate público, sobretudo, num ano eleitoral.

Riscos à liberdade de expressão

A regulação acerca das chamadas “notícias falsas” traz a necessidade de um olhar cuidadoso para evitar que o combate a esse fenômeno resulte na violação de direitos fundamentais como a liberdade de expressão, o acesso à informação e a privacidade dos usuários de internet.

Em primeiro lugar, é importante lembrar que o próprio conceito de fake news é questionado por diversos especialistas em todo o mundo. No relatório Uma abordagem multidimensional sobre a desinformação, lançado em março de 2018, o Grupo de Alto Nível da União Europeia sobre fake news e desinformação online aponta para uma taxonomia diversa da ideia de “notícias falsas” e defende que o debate seja feito baseado nos conceitos de “desinformação”, “informações ludibriadoras” ou “notícias fraudulentas”. Aspectos como contexto, interpretação e autoria das informações devem ser considerados na análise de qualquer conteúdo.

Nesse sentido, um primeiro risco da regulação da questão passa por conceituar o tema. Em workshop organizado em abril pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, especialistas de diferentes setores apontaram que qualquer definição de fake news não pode ser vaga e ampla, sob o risco de cercear o debate político. A caracterização de um conteúdo como “notícia falsa” deveria, assim, requerer pontos como: a) a simulação/fabricação de um discurso/notícia factual, o que, por princípio, excluiria conteúdos opinativos dessa caracterização; b) a distorção deliberada de fatos e dados; e c) a difusão visando um dano específico, considerado o elemento da intencionalidade no processo.

A imprensa tradicional tem, em uníssono, utilizado a polêmica para tentar retomar seu histórico lugar de “guardião da verdade”, como se os noticiários dos grandes meios impressos e televisivos fossem isentos e tivessem o privilégio exclusivo sobre a produção de informação
“de qualidade”

A preocupação com a conceituação é mais do que justificada, considerando que entre um conteúdo totalmente falso e um “verdadeiro” existem gradações infinitas. Se, por um lado, um fato ou dado totalmente falso pode ser facilmente identificado, por outro, todo o restante carece de uma análise mais complexa. Preocupantemente, projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional trabalham com conceitos ainda mais vagos, como o de “informações prejudicialmente incompletas”.
Um segundo aspecto central do debate é sobre a quem cabe analisar um conteúdo e caracterizá-lo como fake. Alguns países têm adotado medidas temerárias nesse sentido.

O pretexto de combater a proliferação de notícias falsas tem gerado um cenário de derrubada generalizada de conteúdos, restringindo a emissão de críticas legítimas e silenciando vozes dissidentes, sob a preocupação da comunidade internacional. É o caso da lei alemã, que obriga plataformas a derrubarem em 48 horas qualquer conteúdo com fortes indícios de serem “ilegais”. A norma tem sofrido tantas críticas que a gestão Merkel já considera revê-la. Na Malásia, onde a disseminação de fake news foi criminalizada, um turista dinamarquês foi preso por ter publicado em uma rede social mensagem sobre o tempo de atendimento de uma ambulância diferente do efetivamente ocorrido.

Interesse público

Em março de 2017, os relatores especiais para a Liberdade de Expressão de diversos organismos internacionais, como a ONU, publicaram conjuntamente um documento intitulado Declaração sobre a Liberdade de Expressão e Notícias Falsas, Desinformação e Propaganda. Entre as recomendações feitas pelos relatores está a de que restrições à liberdade de expressão devem, necessariamente, considerar o interesse público, em casos como incitação à violência ou à discriminação.

No Brasil, o Marco Civil da Internet – Lei nº 12.965/14 – estabelece que o provedor de aplicações da rede, somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de informações geradas por terceiros, se não derrubar o conteúdo após determinação da Justiça. Os casos relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade podem ser apresentadas perante os juizados especiais, Art.19, § 3.

O pretexto de combater a proliferação de notícias falsas tem gerado um cenário de derrubada generalizada de conteúdos, restringindo a emissão de críticas legítimas e silenciando vozes dissidentes

O objetivo de tal dispositivo, baseado em padrões internacionais, é impedir que haja, por parte das plataformas digitais, remoções indiscriminadas de conteúdo na internet que resultem na prática de censura privada. Qualquer tentativa de regular a questão deve, portanto, passar pelo crivo judicial, que é quem tem as melhores condições para avaliar se houve danos na veiculação de determinado conteúdo. Mídias online, e não as redes sociais, devem sim, ser responsabilizadas pela veiculação de notícias comprovadamente falsas. Mas decisões tomadas a posteriori por juízes e não pelas plataformas permitem o contraditório e a ampla defesa em juízo.

Pouca transparência

Atualmente, plataformas como Google e Facebook já têm realizado filtros automatizados e pouco transparentes, baseados em algoritmos ou bloqueadores, para derrubar o alcance de determinados conteúdos na internet, quando não para removê-los por completo, incorrendo muitas vezes em censura privada. O Facebook, por exemplo, analisa conteúdos considerados “caça-cliques” e já removeu cerca de 600 milhões de notícias falsas no primeiro trimestre de 2018 em todo o mundo.

Em maio, a rede social anunciou uma parceria com agências de checagem. A partir da notificação de usuários, o conteúdo é enviado para a análise das agências e, se for considerado inverídico, terá seu alcance reduzido. Menos de um mês depois, porém, a checagem da agência Lupa, parceira do Facebook, em torno da entrega de um terço do Vaticano ao ex-presidente Lula, na prisão em Curitiba, comprovou os argumentos de quem ver no mecanismo um risco para a liberdade de expressão.
Entre declarações do Vaticano, do Partido dos Trabalhadores e do consultor do Pontifício Conselho Justiça e Paz do Vaticano, Juan Grabois, a agência carimbou uma matéria do Portal Fórum como fake, posteriormente, comprovada como verdadeira. Mas o estrago já havia sido grande. Além da redução do alcance da publicação, o Facebook notificou todos os usuários que haviam compartilhado a notícia de que ela vinha de uma página que produzia fake news.

Nada contra, pelo contrário, à checagem de notícias. Trata-se de uma prática do bom jornalismo. Mas, transformar as agências em certificadoras definitivas de conteúdos que poderão ou não circular livremente nas redes é algo que vai na contramão da promoção de um ambiente de liberdade de expressão. Iniciativas das plataformas que absolutizam a referência desses checadores e da mídia tradicional são, portanto, bastante preocupantes, e podem reproduzir, num ambiente de monopólio na internet, a concentração que já vivenciamos nos meios tradicionais, com sérios impactos à diversidade e pluralidade.

Controle ou censura?

O Google, infelizmente, tem trafegado no mesmo sentido. Além de estampar um selo de checagem de fatos em notícias, informa que tem aprimorado seu algoritmo para não priorizar nas buscas conteúdos considerados enganosos. Se seguirem agindo como editoras de conteúdo, cabe perguntar se a não responsabilização judicial das plataformas por informações emitidas por terceiros deve permanecer como tal. Sobretudo, num contexto eleitoral, também cabe perguntar se o controle do fluxo de conteúdos na internet por gigantes globais do setor não ameaça a própria soberania nacional.

A regulação acerca das chamadas “notícias falsas” traz a necessidade de um olhar cuidadoso para evitar que o combate a esse fenômeno resulte na violação de direitos fundamentais como a liberdade de expressão, o acesso à informação e à privacidade dos usuários de internet

Em terceiro lugar, criminalizar o compartilhamento de conteúdos pelo público geral configura medida totalmente desproporcional. Por maior que seja o efeito dos compartilhamentos, condenar à prisão indivíduos por, simplesmente, redistribuirem ou promoverem conteúdos dos quais não são autores ou que não modificaram não pode ser visto como uma medida eficaz para enfrentar esse problema. Na maior parte das vezes, o cidadão comum sequer tem informações ou estrutura para verificar a veracidade de um conteúdo que circula pela internet. Apontar, nessa direção, só fará os usuários digitais exercerem autocensura e deixarem de compartilhar informações na rede. Isso pode ser extremamente danoso para um processo eleitoral democrático. Democracias em todo o mundo convivem com um grau de desinformação elevado, mas não com a censura. Assim, a responsabilização de criadores e disseminadores deliberados das chamadas “notícias falsas” deve passar muito mais por medidas civis e econômicas do que criminais.

Caminhos para enfrentar o problema

Em sociedades democráticas, é o confronto de ideias e a existência de debates abertos e plurais que podem combater a desinformação. É por isso que, em sua declaração conjunta, os relatores da ONU e da OEA para liberdade de expressão afirmam que os Estados – incluído o poder Legislativo – têm a obrigação de promover um ambiente de comunicação livre, independente e diverso, o que inclui a promoção da diversidade nos meios de comunicação e, também, a existência de meios de comunicação pública fortes, independentes e dotados de recursos adequados.

Já as plataformas devem ser neutras e transparentes. Essa discussão avança em todo o mundo e ganhou corpo após o escândalo do Facebook e da Cambridge Analytica. Há diversos mecanismos que poderiam ser pensados para garantir transparência sobre seu funcionamento e ampliar o controle dos usuários sobre os conteúdos que publicam e acessam, desmontando os efeitos bolha e a estrutura de monetização que estimula a criação e difusão das chamadas notícias falsas. Um regramento importante seria, por exemplo, assegurar transparência sobre conteúdos pagos, obrigando as plataformas a manterem registros de anúncios e postagens impulsionados, valores, anunciantes e alcance – especialmente nas eleições, como forma de evitar o abuso do poder econômico na propaganda na Internet.

Do ponto de vista legislativo, a única lei que pode contribuir de fato para evitar a potencialização das chamadas notícias falsas é uma Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. A produção e direcionamento das chamadas fake news hoje é fruto da coleta e tratamento maciços e indiscriminados de dados pessoais. Por isso, como já recomendou a Comissão Europeia, quanto maior a proteção e o controle dos usuários sobre suas informações, menor a incidência de intermediários e da dinâmica que estimula a promoção das chamadas notícias falsas, seja por motivação política por meio de conteúdos impulsionados, seja para fins de monetização por meio da busca de likes e compartilhamentos. A Câmara dos Deputados já aprovou um projeto nesse sentido, que aguarda agora votação pelo Senado (PLC 53/18).

Debate qualificado

Por fim, políticas públicas de educação para a mídia e a promoção de práticas de empoderamento digital são fundamentais para serem colocadas em curso, incluindo aí o fomento à produção de conteúdos positivos e contranarrativas que engajem a sociedade num debate mais qualificado.

Por isso ONU, OEA, Organização para a Segurança e Cooperação na Europa-OSCE e a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos-CADHP defendem “o desenvolvimento de iniciativas participativas e transparentes para uma melhor compreensão do impacto da desinformação e da propaganda na democracia, na liberdade de expressão, no jornalismo e no espaço cívico”.
Se o Brasil apostar nessas medidas preventivas, atacando as causas do problema, a chance que teremos de construir um ambiente de debate público menos permeável à desinformação será, sem dúvidas, muito maior, mais efetiva e mais perene.
Senão, seguiremos enxugando gelo.

FONTE: https://www.laurocampos.org.br/2018/10/10/fake-news-como-enfrentar-a-desinformacao-sem-cercear-a-liberdade-de-expressao/