Abertura comercial, reforma ministerial e políticas conservadoras estão entre as primeiras defesas do presidente eleito

Lu Sudré

Antes mesmo de Jair Bolsonaro (PSL) ser eleito presidente nas eleições de outubro, a Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional lançou o chamado “Manifesto à Nação: O Brasil para os brasileiros”. Com 180 signatários, o documento propõe uma agenda de governo dividida em 4 eixos principais: Modernização do Estado, Segurança Jurídica, Segurança Fiscal e “Revolução na educação”.

Em declarações recentes, o militar reformado e sua equipe têm seguido as diretrizes principais do proposto pela bancada evangélica. A redução ministerial, por exemplo, já foi anunciada. As 29 pastas atuais se tornarão 15 a partir do ano que vem. Outros pontos programáticos do manifesto como a abertura comercial e a não priorização do Mercado Comum do Sul (Mercosul), alvo de críticas do setor industrial, são frequentemente defendidas pelo futuro “superministro” da Economia, Paulo Guedes.

A “modernização previdenciária”, também prevista no manifesto, está contemplada com a articulação de representantes do novo governo pela aprovação da reforma da previdência ainda este ano. Admirador do modelo chileno de aposentadoria, Guedes sinalizou a possibilidade de uma segunda reforma que insira o sistema de capitalização individual na previdência no governo Bolsonaro.

Na área da educação, o manifesto da bancada evangélica faz defesa contundente do Escola Sem Partido e se posiciona contra uma suposta “ideologia de gênero” adotada pelos governos petistas. O projeto é carro-chefe dos bolsonaristas, que, com 52 parlamentares do Partido Social Liberal (PSL) eleitos, passaram a ser a segunda maior bancada do Congresso Nacional.

Christina Vital, pesquisadora na área de religião e política, relembra que a relação de Bolsonaro com a Frente Parlamentar Evangélica é antiga e que, claramente, as articulações políticas atuais encampam os valores e a agenda moral da religião, a exemplo da provável nomeação de Onyx Lorenzoni, político da bancada evangélica, para Ministro Chefe da Casa Civil.

Apesar de não ocupar cargos na política institucional, a aproximação do futuro presidente com o pastor Silas Malafaia, figura de grande influência na sociedade e na política, é outro forte elemento dessa unificação. “Não são [apoios] a troco de nada. Teremos que acompanhar, bem cuidadosamente, o que está em jogo, o que está se trocando nesses apoios”, ressalta a professora de pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF).

A partir dos itens da agenda da bancada evangélica já confirmados pelo novo presidente, o Brasil de Fato elencou as principais propostas para o país do manifesto “O Brasil para os brasileiros” que podem ser incorporadas pelo novo governo a partir de janeiro de 2019, e que já contam com apoio de 180 congressistas da nova legislatura:

“Superministérios” e fusões

O primeiro eixo do manifesto se posiciona a favor do “enxugamento” da máquina estatal. O argumento utilizado é o de que, com a proposta de uma “nova estrutura ministerial”, haveria a redução de até 600 cargos comissionados.

Além da redução de ministérios, no fim de outubro, o presidente eleito anunciou a formação de um superministério da Economia, liderado por Paulo Guedes. A nova pasta será a unificação do Ministério da Fazenda, do Planejamento e do Mdic (Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços).

Com essa formação, três setores essenciais ao país estariam sujeitos ao economista. No manifesto há apenas a unificação da Fazendo e do Planejamento, na qual o Mdic seria uma subpasta do Ministério de Produção Nacional.

Desmonte do Trabalho, Justiça inchada

Na última quarta-feira (7), Bolsonaro declarou que irá extinguir o Ministério do Trabalho, ação estudada por sua equipe de transição. Na agenda programática proposta pela frente parlamentar evangélica, o Ministério está diluído em secretarias submetidas a outras pastas: a Secretaria de Inspeção do Trabalho, por exemplo, passaria a ser subordinada ao Ministério da Justiça. A Secretaria de Políticas Públicas para o Emprego, por sua vez, estaria submetida ao Ministério da Produção Nacional.

Na onda de retrocessos do governo Temer, a agenda da bancada evangélica também sugere o uso intensivo da terceirização de mão de obra no serviço público, contra o “privilégio” do “servidor concursado”.

O segundo “superministério” do governo Bolsonaro, da Justiça, passará por uma grande expansão com o juiz de primeira instância, Sérgio Moro, como ministro.

A partir de 2019, o Departamento de Polícia Federal (PF) e Polícia Rodoviária Federal (PRF) devem voltar à Justiça, extinguindo-se o Ministério de Segurança Pública criado por Michel Temer (MDB), que completaria seu primeiro ano de existência em fevereiro de 2019.

Além disso, a Controladoria-Geral de União (CGU) e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão que fiscaliza delitos como lavagem de dinheiro e que atualmente está atrelado à Fazenda, também passarão ao comando de Moro.

A proposta da Frente Parlamentar Evangélica também propõe uma Justiça dilatada. A pasta sugerida seria composta pela Secretaria de Direitos Humanos, pela Secretaria Nacional da Juventude, por uma coordenação-geral de Imigração e com uma Secretaria de Inspeção do Trabalho, absorvendo o Departamento de Registro Sindical, responsável pelo reconhecimento estatal das entidades de classe.

Agronegócio

Com agendas e interesses completamente distintos e conflituosos, a junção das pastas de Agricultura e Meio Ambiente (MMA) também foi declarada por Bolsonaro, que, após pressão de diversos setores da sociedade, recuou. A fusão segue indefinida.

As ideias da bancada evangélica para as áreas são ainda mais amplas. O manifesto orienta a criação do Ministério do Agronegócio, que incluiria o Ministério da Agricultura, do Meio Ambiente, a Secretaria Especial de Pesca, a Secretaria Especial da Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário.

Mesmo sem a criação institucional do Ministério do Agronegócio, a proposta de fusão de Bolsonaro alcança o objetivo requerido pelo manifesto. Em entrevista ao Brasil de Fato, na ocasião em que ocorreu o anúncio, o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ), coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista da Câmara, destacou que os dois ministérios têm atribuições distintas e que o Ministério da Agricultura, tradicionalmente, sofre maior influência dos interesses do agronegócio.

“Não faz sentido subordinar a proteção do meio ambiente do país, que perante o mundo inteiro é conhecido como o país da Amazônia e da biodiversidade, à ganância por lucro fácil e rápido”, afirmou Molon.

Outra ameaça ao meio ambiente é a proposta de “reduzir as incertezas” quanto às exigências para obtenção das licenças socioambientais. Acompanhando essa medida, a frente parlamentar evangélica propõe a criação de um Processo Único de Licença, instituído por lei, onde todos os órgãos federais responsáveis por licenciamento estejam reunidos.

Nessa nova organização, a partir do momento que os pedidos forem protocolados, as áreas competentes terão prazo comum de 60 dias para emissão de pareceres. Caso não haja aprovação no prazo legal, a licença passaria a ser considerada tacitamente outorgada.

Privatização acima de tudo

As medidas de desestatização e atuação da iniciativa privada no último período são exaltadas a todo momento pela Frente Parlamentar, que cita a venda de três distribuidoras de energia da Eletrobrás como um bom exemplo dos frutos que essas “parcerias” podem trazer ao país.

Seguindo essa diretriz, a equipe de Bolsonaro já sinalizou o desejo de continuidade das privatizações feitas por Temer de modo ainda mais acentuado: o governo Bolsonaro planeja que o PPI conduza processo de privatização de R$ 700 bi.

A privatização é conhecida pelo povo brasileiro, que acaba sem o retorno de seus bens nacionais. No governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002), a multinacional Vale foi vendida por R$ 3,3 bilhões, quando somente suas reservas minerais eram estimadas em mais de R$ 100 bilhões.

A proposta de ampla privatização da bancada evangélica vai além: sugere que as agências reguladoras tenham autonomia em relação ao Estado, impedindo o governo brasileiro de influir em áreas estratégicas da economia brasileira.

Ao adotar essa política, órgãos como a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e Agência Nacional de Saúde (ANS), entre outras, estariam mais sujeitas à influência e infiltração pelo mercado –entregando à autorregulação decisões sobre reajustes nas contas de luz e nos planos de saúde privados, bem como o serviço de telefonia.

O “raio privatizador” mira também a área da saúde. A transferência da manutenção de Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e das Unidades Básicas de Saúde (UBSs) para a sociedade civil, por intermédio de convênios ou contratos de gestão com Organizações Sociais (OSS), é mais uma medida sugerida.

Brasil para os estrangeiros

Apesar de afirmar em seu título que defende um “Brasil para os brasileiros”, o Manifesto à Nação defende uma política fiscal que privilegia o mercado exterior.

O documento indica a eliminação total de tarifas ao comércio nas transações entre Mercosul e Aliança do Pacífico, assim como a revogação da decisão 32/00 do Conselho do Mercosul, que define que os Estados integrantes do bloco só podem negociar entre eles.

As propostas já foram defendidas inúmeras vezes por Paulo Guedes. Paulo Kliass, doutor em Economia, critica a linha adotada pelo economista e utiliza o exemplo dos Estados Unidos para argumentar que essa política neoliberal não está sendo usada nem pela maior potência capitalista mundial, que, desde a eleição de Donald Trump, tem adotado medidas protecionistas.

“Paulo Guedes está indo na contra corrente. Quer praticar um liberalismo irresponsável, de abertura completa da economia, em um momento que os países líderes do mundo, com exceção da China, estão praticando o protecionismo”, afirma Kliass.

“Escola de direita” 

Denunciando um suposto “uso político-partidário” de escolas e universidades públicas, que, segundo o manifesto, “tornaram-se instrumentos ideológicos que preparam os jovens para a Revolução Comunista, para a ditadura totalitária a exemplo da União Soviética e demais regimes sanguinários”, a frente parlamentar faz uma defesa cega do movimento Escola Sem Partido.

Usando expressões como “democratismo comunista” e “ideologia da pornografia”, o projeto de lei visa, por exemplo, proibir qualquer discussão de gênero nas escolas e coibir a liberdade de ensino dos docentes.

A defesa do ensino moral e da meritocracia, principalmente, é ostensiva. “É necessário termos um sistema de ensino fundado na meritocracia, em permanente ascensão de conhecimento, sempre visando a mais alta qualidade em todas as etapas”, prega o manifesto.

Digital a que preço?

A Frente Parlamentar Evangélica recomenda uma série de ações para digitalizar diversos  processos governamentais. A liberação de benefícios como o seguro-desemprego seria de forma totalmente digital, desde a solicitação até a concessão, o que dificultaria o acesso de pessoas sem celulares ou computadores aos seus direitos. A digitalização generalizada também poderia dificultar o acesso de idosos e pessoas com deficiência a seus benefícios.

Uma proposta refere-se diretamente ao INSS. O propósito, segundo o texto, seria facilitar o atendimento ao cidadão via rede de dados e aplicativos de forma complementar ao atendimento nas agências físicas. A inovação, porém, pode ser uma tentativa de substituir agências físicas em um cenário de enxugamento do serviço ao cidadão.

Interesses escondidos

A partir das propostas feitas pelo manifesto, Christina Vital reforça que os parlamentares fazem da “agenda moral” uma cortina de fumaça.

A pesquisadora pondera que, entre as lideranças religiosas que entram na política, existem aqueles que realmente acreditam nos valores pregados, mas também há aqueles que estão em uma disputa pelo poder político-institucional, dosando a menção a valores evangélicos em suas ações de forma estratégica, mas ocultando interesses econômicos e partidários.

“No que diz respeito aos que estão buscando poder, há essa tríade de interesse: maior presença midiática, maior favorecimento econômico de suas próprias instituições e de favorecimento de seus partidos”, ressalta a professora.

“Toda a apresentação dessa campanha [Bolsonaro] foi de ‘defesa do povo brasileiro’. Muito da agenda que está sendo posta pela equipe econômica vai contra as expectativas da base da sociedade, da base que elegeu essa candidatura, que demanda um Estado eficiente e que demanda proteção, segurança física e econômica a partir de ações estatais. Há uma descontinuidade entre os interesses apresentados pelo Executivo eleito e o que são os anseios da sociedade nas questões econômicas”, critica a socióloga especialista em política e religião.

“Por isso a agenda moral vira uma cortina de fumaça a partir da qual eles consolidam sua proximidade e sua comunicação com esse eleitorado, mas, que agora, vai observar e sentir, talvez, os impactos de políticas que sejam implementadas e que vão na direção oposta aos seus interesses”, finaliza Vital.

Edição: Diego Sartorato