Fotógrafo percorreu 38 cidades de 20 estados do país para capturar a dimensão humana no atendimento dos médicos cubanos
“Os cubanos demonstraram um novo modo de praticar medicina”. Essa afirmação é de alguém que acompanhou de perto o Programa Mais Médicos nas regiões mais isoladas do Brasil. Em 2015, o fotógrafo e jornalista Araquém Alcântara percorreu 38 cidades de 20 estados do país com uma câmera na mão, buscando capturar a dimensão humana do projeto.
O material foi publicado no livro “Mais Médicos”, cujas fotos circularam em massa pela internet após o governo cubano anunciar sua retirada do programa. Segundo o Ministério da Saúde Pública de Cuba, o anúncio, por parte do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), de mudanças no contrato, iniciado em 2013 e revalidado em 2017, foram determinantes para a saída dos profissionais do programa. A decisão também ocorreu em repúdio a declarações de Bolsonaro consideradas “ameaçadoras e depreciativas” .
“O que mais me marcou foram os olhares. A questão da aproximação, do toque, da conversa, do carinho, de médicos circulando. Médicos que não ficam só atrás da mesa, atendendo as pessoas em dez, quinze minutos. Mas sim se dedicando a ouvir, participando de questões da comunidade, se envolvendo com o povo”, relata Alcântara em entrevista ao Brasil de Fato.
O renomado fotógrafo considera o livro um manifesto humanista e defende a continuidade da atuação dos médicos em regiões em que o Estado se faz ausente. “O Mais Médicos é um programa revolucionário de atendimento à saúde. Isso eu vi com meus próprios olhos. Essa é a função do jornalista e do fotógrafo, ser testemunha ocular”.
Confira a entrevista na íntegra.
Brasil de Fato – Suas fotos têm circulado muito após a saída de Cuba do Programa Mais Médicos. Como vê esse destaque que a obra tem recebido e porque decidiu fotografar os atendimentos desse programa?
Araquém Alcântara – A ideia surgiu de um amigo meu, médico, Dr. Fausto Siqueira de Mello Júnior, e abracei a ideia de fazer uma grande viagem pelo Brasil mostrando, sobretudo, lugares de atuação dos médicos, não só cubanos, em áreas remotas do país. Após um ano e meio de andanças com a coordenação editorial de Éder Chiodetto, da design Cristina Gur, e do companheiro de viagem, Marcelo Delduque, no comando dos textos, publicamos uma edição pela Terra Brasil, que logo se esgotou, e que agora ganha esse seu momento histórico. Esse triste momento histórico.
Como recebeu a circulação intensa da obra?
O que dá pra notar é que as pessoas não estão cegas e que ainda há vida inteligente. Os reflexos negativos disso [saída dos cubanos do Programa] já são notáveis. São 700 municípios que nunca haviam tido médico e agora voltam a ter que improvisar com enfermeiras. É uma pena, mas, sobretudo, um ato de lesa humanidade, na minha opinião, porque era preciso ver esse programa além de partidarismo, além da política. É uma questão de humanismo, de fraternidade.
Foi com esse espírito que eu fiz essa saga e está tudo no livro, como o amor dos médicos estrangeiros ao seu trabalho. O Brasil precisa aprender a ser patriota. A nossa noção de cidadania é muito pequena, precisamos efetivar a fraternidade nesse país e repartir essa maravilha que é lutar para acabar com a fome, com as carências de um Brasil que poucos conhecem. É um país que ainda precisa muito para ser classificado como um país civilizado onde o Estado está presente e ampara seus cidadãos.
É um registro histórico, possivelmente o único…
Talvez seja o único da fotografia, mas em texto há um livro maravilhoso, finalista do Prêmio Jabuti, do escritor Antônio Lima Júnior que chama “Branco vivo”, que recomendo fortemente a leitura. O que reafirmo é que é muito triste que todo esse trabalho fique agora apenas em pedaços de papel e fotografias.
Como foi fotografar os atendimentos por onde passou, quais foram os locais? E, a partir disso, porque acha que as pessoas são hostis ao programa?
A hostilidade vem dessa percepção de que os médicos cubanos são escravizados. Eles aceitaram e assinaram um contrato em que grande parte de seus salários vai pro Estado. Acontece que, em Cuba, é como se fosse um retorno do trabalho deles que o Estado proporcionou com o curso de medicina gratuito. A questão maior é que os médicos brasileiros (talvez agora haja uma minoria nesse aspecto), não querem largar sua zona de conforto nas grandes capitais. Como o exército faz muitas vezes e faz muito bem, tem que ser dito, de colocar a presença brasileira na Amazônia em lugares remotos com os mais jovens. Acredito que os mais jovens médicos deveriam se dedicar como os Médicos Sem Fronteiras (MSF) a ocupar esse país, fazendo um grande gesto de humanidade, levando a quem não tem condições, o conforto e o amparo de um atendimento médico.
Quais histórias e casos te marcaram nessa trajetória?
Muitos, muitos casos de solidariedade em que o médico se aproxima das lideranças e das comunidades como aconteceu em Poço Redondo (SE). O doutor Sael e a Dona Zefa, líder de uma comunidade quilombola de Poço Redondo, da umbanda, que por meio da espiritualidade se aproximaram. O doutor Sael é da santeria cubana. Os dois se uniram e transformaram o atendimento, inclusive a prevenção nessa comunidade, radicalmente.
Outros casos, como por exemplo, o de uma médica em Alagoas que percebeu a presença da esquistossomose e se dedicou ao saneamento, ao esclarecimento da comunidade. São exemplos vivos. Mas o que mais me marcou foram os olhares, a questão da aproximação, do toque, da conversa, do carinho, de médicos circulando. Médicos que não ficam só atrás da mesa, atendendo as pessoas em dez, quinze minutos, mas sim se dedicando a ouvir, participando de questões da comunidade, se envolvendo com o povo. Foi uma experiência riquíssima porque eu vi que é possível. Eu vi que é possível instaurar essa fraternidade, sobretudo, por ser um dever do Estado. Acredito que o Brasil tem muitas áreas onde não há a presença do estado e aí reina a barbárie. São, por exemplo, lugares da Amazônia em que o Estado não está presente e aí a coisa não anda. Isso é preciso mudar urgentemente.
Qual o papel da fotografia na sociedade? Essa obra, de certa forma, mostrou algo que era desconhecido para as pessoas?
A fotografia é uma linguagem que está muito ligada ao lúdico, ao prazer, à beleza, mas também pode ser um forte instrumento de testemunho social, de esclarecimento, de trazer a luz. Fotografia é a linguagem da luz, junto dela há uma possibilidade política e ideológica do fotógrafo demonstrar o que pensa, o que acredita, aquilo com o que ele se revolta. Não só a beleza. O fotógrafo, pode, com o seu trabalho, mostrar as mazelas, os erros, as atitudes desumanas. A fotografia é um poderoso instrumento de mostrar a verdade e de tentar fazer justiça.
Acredita que o livro, a foto e até mesmo o texto mostraram o que realmente é o Programa?
Sim, a imagem é reveladora. Ela não é comprobatória de realidade nenhuma, mas quando incluída em uma narrativa de livro, o conjunto fica interessante. Ao perceber o conjunto de imagens do livro, fica nítido que, a partir desse manifesto humanista, o programa Mais Médicos tem que continuar porque o Brasil carece disso. O livro é uma contribuição a essa discussão.
Na sua opinião, qual a perspectiva para essa área da saúde, para o atendimento das pessoas mais vulneráveis no Brasil?
É preciso preencher imediatamente as vagas desses milhares de médicos que estão indo embora, seja com médicos brasileiros ou de qualquer outro país, mas o povo não pode ficar carente, mendigando para o Estado o atendimento básico. No Brasil, entra governo e sai governo e não perceberam que tudo está na educação, na saúde, e no cumprimento de leis, no cumprimento da Constituição.
O atendimento dos médicos cubanos de fato era diferente?
Sem dúvida. Principalmente por essa questão da atenção e do carinho, da não pressa, do envolvimento com as questões das comunidades. Os municípios brasileiros precisam ter, assim como tem um delegado, um médico. Não é possível as crianças ainda dormirem com fome, os mais velhos desassistidos, e as comunidades carentes de uma opinião médica, de um atendimento. Os cubanos demonstraram aqui no Brasil, um novo modo de praticar medicina na minha opinião. Percebi isso, sobretudo, com o ir até as pessoas doentes e dar essa atenção. Isso é revolucionário.
O programa Mais Médicos é um programa revolucionário de atendimento à saúde. Isso eu vi com meus próprios olhos. Essa é a função do jornalista e do fotógrafo, ser testemunha ocular. Esse livro é uma testemunha ocular de algo que precisa continuar, mesmo que em outras bases. Espero que as pessoas tentem se aproximar desse livro porque ali está uma história brasileira, um manifesto humanista.
Edição: Mauro Ramos